domingo, 30 de junho de 2024

Luzia, a menina que luzia

        

        Linda desde sempre, o que mais encantava naquela menina era o sorriso, que conseguia encantar quase todos. Afinal, sempre aparece alguém para querer menosprezar ou fazer desdém das qualidades alheias. Pura inveja ou, talvez, falta de visão. Só cuidado para não bater a cara contra o muro.

          Ah, já ia me esquecendo de apresentar tal encanto de garota. Ela se chamava Luzia e, que nem o seu nome, brilhava por onde passava. E lá ia Luzia, luzindo pelas ruas de Olho d'Água das Cunhãs, cidade incrustada no coração do Maranhão. Não poderia haver melhor lugar para vir ao mundo criatura mais cheia de paixão pela vida. Pois foi lá mesmo que nasceu Luzia.

          A menina, que era boa de garfo, não rejeitava quase nada. Adorava frutas, mas era apaixonada por bananas, especialmente as bem maduras. Fazia aquela cara de felicidade e, caso não houvesse alguém por perto, falava sozinha de boca cheia: "Hum, que delícia!"

          Pois o que aconteceu foi por esses tempos de Luzia, ainda menina, que luzia a caminho da escola. Quase no meio do trajeto, havia uma feira, onde se encontrava uma banca de bananas. O dono era um homem de cara amarrada, cujo nome ninguém sabia ao certo. Seja como for, todo mundo o chamava de Peteleco, pois ele tinha a mania de dar petelecos nas orelhas das crianças.

          Luzia, assim que viu aquela quantidade enorme de bananas, quis comprar tudo, mas o dinheiro não era suficiente. Ela se aproximou do vendedor.

          — Peteleco, bom dia!

          — Bom dia, menina.

          — Quanto tá a banana?

          — Dez reais a dúzia.

          — Mas eu só quero uma.

          — Não vendo apenas uma banana.

          — Mas eu só tenho um real.

          — Já falei que não vendo apenas uma banana.

          — Mas eu quero comprar.

          — Toma aqui uma banana.

          Luzia, já com a banana na mão, começou a comê-la ali mesmo. Mas, antes que fosse embora, virou-se pro vendedor.

          — Peteleco, pode me dar outra?

          — Toma aqui outra banana, mas suma daqui antes que eu te dê um peteleco.

          Luzia tratou de pegar aquela fruta e saiu correndo para não ficar com as orelhas doloridas. Além do mais, era dia de aprender coisas novas na escola. E ela adorava ciências.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Luzia, a menina que luzia" foi publicado por Notibras no dia 30/6/2024.
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Marcio e Bonifácio, amigos quase inseparáveis

   

           Marcio, um humano, tinha como melhor amigo o Bonifácio, um cachorro dos mais vira-latas, muito mais pelas atitudes que pela aparência. Se alguém quisesse saber onde um estava, bastava procurar pelo outro e vice-versa. Nem unha e carne eram tão próximos.

          Se o Marcio saía noite adentro à procura de uma companheira para dividir a cama, mesmo que por uma noite apenas, lá ia o Bonifácio de olho em uma cadelinha ajeitada. No entanto, apesar de tamanhas tentativas, geralmente os dois companheiros, vencidos, voltavam cabisbaixos para o lar, doce lar. Mas nada que, já no dia seguinte, não os fizesse desistir de sonhar com fêmeas das respectivas espécies. 

          O tempo de solteirice daqueles dois, entretanto, estava próximo ao fim. Quer dizer, apenas o do Marcio, que, finalmente, encontrou nos braços da linda Carmélia o amor eterno de Vinicius de Moraes. Quanto ao Bonifácio, apesar da sua fidelidade canina, não deixou de dar aquelas escapadelas quando a noite caía mansamente pela cidade. 

          Sem o companheiro para fazer dupla nas contendas tão comuns na vida noturna, Bonifácio, de vez em quando, retornava estropiado para casa. Tudo por conta de desavenças com outros cães por causa dos carinhos de uma ou outra cachorra no cio. Seja como for, Marcio tratava de cuidar daquelas feridas, enquanto dava conselhos para o amigo. 

          Há quase dois anos nessas idas e vindas solitárias, Bonifácio chegou à residência naquele início de manhã. Abriu o portão com a patinha ferida e foi se deitar na aconchegante almofada ali na varanda. Não tardou, Aldo, um amigo de longa data do Marcio, lá da calçada, começou a bater palmas. Ele foi atender e, em seguida, já estava todo sorriso com o conhecido. Os dois, então, tiveram o seguinte interlúdio:

— Pô, saio quase todas as noites, mas só encontro o seu cachorro, nunca te vejo.

— Bah, sou casado. O Bonifácio ainda tá solteiro. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Marcio e Bonifácio" foi publicado por Notibras no dia 30/6/2024.
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sábado, 29 de junho de 2024

Éramos felizes mesmo assim

Mamãe e papai não se suportavam, mas pareciam se entender muito bem na intimidade, haja vista as juras de amor que ouvíamos vindas do quarto noite adentro. Talvez por isso, as nossas manhãs eram tranquilas, com aqueles dois lançando sorrisos de felicidade por conta da satisfação vivida horas antes. 

       Como meus irmãos e eu entrávamos na escola bem cedo, sempre saíamos com a sensação de que a nossa família era que nem comercial de margarina. É verdade que, vez ou outra, o sabor não era dos melhores, mas nada que nos fizesse desacreditar que éramos felizes. E éramos, pelos menos na maior parte do tempo.

       Essa intensidade de emoções perdurou até que nós, provavelmente cansados de vivenciar tantas brigas, fomos saindo, um a um, de casa. Laís, minha irmã mais velha, que havia entrado na faculdade, arrumou um emprego de meio período, que lhe deu o suficiente para dividir um quarto-e-sala com uma colega. 

         Luís Carlos, o do meio, que havia engravidado a namorada, foi obrigado pelo pai da moça a se casar. Casou, mas conseguiu posição na empresa da família da esposa, além de não precisar pagar aluguel, pois foi morar nos fundos da mansão dos sogros, onde reside até hoje, rodeado dos meus quatro sobrinhos, um mais lindo do que o outro. 

          Fui a última a abandonar o barco, talvez por ser a mais mimada. Papai sempre fazia questão de preparar meu café da manhã, enquanto mamãe, vez ou outra, me presenteava com um vestido novo. Todavia, até para os caçulas chega a hora de deixar o ninho, e comigo não foi diferente. 

           Não foi por conta de estudo, trabalho ou casamento. Havia acabado de me formar em biologia e não pensava em fazer alguma pós-graduação. Dessa forma, estava me sentindo livre para alçar novos voos, mas sem me preocupar com notas. 

          Quanto ao trabalho, resolvi pedir as contas. Não que eu ganhasse tão mal assim. Na verdade, dava mais do que pro gasto. Entretanto, nunca fui muito boa de cumprir horários, ainda mais porque precisava acordar muito cedo, o que vai contra a minha natureza repleta de preguiça.

           Namorado até que tinha, mas nada sério. Se eu ainda não havia me desvencilhado do Marcos, foi por questão de afeto. Todavia, afeto por afeto, preferi a incerteza da aventura à certeza da mesmice da estabilidade. 

       Marcos, sentindo que nada mais me segurava ao seu lado, suplicou para que eu pensasse melhor. Não tinha coisa para pensar e, por isso, após uma noite tórrida de amor, o deixei dormindo, certamente sonhando que ainda teríamos algum futuro.

        Peguei minha velha mochila de jeans no fundo do armário e a preenchi com duas mudas de roupa, alguns sachês de chá de camomila e capim-limão, uma garrafa térmica e um tanto de coragem. Desde então, caí no mundo. Assim que possível, vou mandar um cartão postal para meus pais. Espero que tudo esteja bem. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Éramos felizes mesmo assim" foi publicado por Notibras no dia 29/6/2024.
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sexta-feira, 28 de junho de 2024

Salustiano e Salazar, eternos rivais

   
       De tão antiga é essa história, não se tem notícia de que alguém ainda se lembre dos protagonistas. Na certa, os que a presenciaram já são tão velhos e a memória há tempos os abandonou. Se bem que o mais provável é que estejam todos escondidos debaixo da terra. 

     Pois bem, quem me contou esse causo foi o Moacir, um septuagenário, que o ouviu do pai, o falecido Januário, cuja fama de amigo das inverdades ainda corre lá pelos lados do município de São Bento do Una, localizado no Planalto do Borborema, bem aqui no nosso lindo Pernambuco. E como a história é muito antiga, nem vou me preocupar em trocar os nomes dos envolvidos.

      Salustiano e Salazar, dois amigos de idades parelhas, eram vizinhos desde os primeiros dias de vida. Apesar da amizade, a disputa sempre os acompanhou. Era uma coisa de saber quem era melhor nisso ou naquilo. Até discussão para saber quem era o mais bonito, mesmo que nenhum tivesse nascido com traços de um famoso contemporâneo, um tal Rodolfo Valentino. 

     O imbróglio entre aqueles dois estava tão acirrado, que as competições andavam cada vez mais esdrúxulas. Uma delas, que parece que foi vencida pelo Salustiano, era a de quem conseguia comer jiló puro e cru. Isso, aliás, foi o estopim para que o perdedor lançasse um desafio.

      — É, Salustiano, estamos ficando velhos. Não demora, a danada da Dona Morte aparece para puxar o pé da gente.

     — Que coisa mais besta, Salazar! Homem que é homem vai ter medo da morte? Isso é coisa de gente frouxa!

       — Ah, não? Então, você vai querer me dizer que não tem medo de morrer?

       — Tenho nada! Sou é homem!

       — Hum. Nem de defunto?

      — Salazar, se eu não tenho medo de suçuarana, vou lá ter medo de gente que já morreu? Deixa de ser besta! Aqui é macho!

       — Hum. 

       — Tá duvidando?

       — Hum. Então, que tal uma apostazinha?

       — Que aposta?

      — Cada um de nós vai ter que ir lá no cemitério e pregar um prego no portão. Mas tem que ser à meia-noite em ponto. 

        — Cominado! Quem vai primeiro?

        — Vamos tirar a sorte pra ver.

     Salazar ficou aliviado por ter ganhado e, por isso, o amigo precisou ser o primeiro a cumprir a missão. O homem, mesmo com um frio percorrendo toda a espinha, tratou de não demonstrar medo. Disse que iria naquela mesma noite cumprir o trato. Salazar, desconfiado de falcatruas por parte do amigo, tratou de marcar o prego e o entregou a Salustiano.

        Quase meia-noite, Salazar, na janela de sua casa, viu o amigo sair.

        — Já vai, né?  

     Como era julho, época de frio e o vento gritava que nem alma penada vagando em busca de redenção, Salustiano pensou em desistir. Que nada! Não tinha como. Pegou uma capa de frio com capuz, apertou o cinto para as calças não caírem, caso precisasse correr, e rumou na direção do cemitério. Olhos arregalados, começou a imaginar assombração. 

       Quando chegou ao destino, pegou o prego no bolso da calça e, pouco antes de martelá-lo, ouviu o piar de uma coruja. Apavorou-se, mas conseguiu pregar o maldito prego.

     Na manhã seguinte, Salazar foi procurar o amigo. Mas nada do Salustiano. Pensou até que ele estivesse dormindo o sono atrasado. Entretanto, como o dia prosseguiu sem notícias do companheiro, Salazar começou a desconfiar que Salustiano teria sido arrastado por algum espírito. Tanto é que, por volta das duas horas da tarde, rumou para o cemitério. 

       Mal chegou, viu o amigo em pé no portão do cemitério. Salustiano estava com a face apavorada e disse para Salazar não se aproximar. 

         — O que houve, Salustiano?

         — Uma alma me pegou!

       Salazar, sabendo que àquela hora do dia as almas estavam todas dormindo, se aproximou do amigo, quando começou a gargalhar. Salustiano, sem entender, continuou com o pavor estampado no rosto.

        — Salustiano, mas você é burro mesmo! Você pregou a manga do casaco no portão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Salustiano e Salazar, eternos rivais" foi publicado por Notibras noo dia 28/6/2024.
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O panguão e os estrosos

    

         Lauro, Alberto e Marcelo estavam sentado à mesa de costume no boteco de sempre. E, entre uma talagada e outra no chope, contavam vantagens como se fossem verdades. Coisas de homens, cuja testosterona precisa ser exaltada para se sentirem machos.

          — Cadê o Souza?

          — Aposto que a mulher não o deixou sair de casa.

          — Pois é, aquele é um panguão!

          Quanto mais bebiam, os amigos se enchiam de coragem que jamais tiveram. Era como se aquele trio fosse a essência dos homens de verdade. Na certa, fizeram parte das frentes comandadas por Alexandre, Gengis Khan, Átila e César. Que nada! Com as vozes ébrias, disputavam aos cuspes quem havia sido Napoleão. 

          Enquanto aqueles três estrosos se embriagavam em devaneios. Souza, duas ruas abaixo, fazia massagem nos pés da Carla, a esposa. Na televisão adiante, os créditos anunciavam o final de "O homem que copiava". Ao lado, a bacia quase vazia de pipoca. A mulher, cheia de malícia nos lábios, sorriu para o marido.

          — Amor, que tal voltarmos para o quarto?

  • Nota de esclarecimento: O conto "O panguão e os estrosos" foi publicado por Notibras no dia 28/6/2024.
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quinta-feira, 27 de junho de 2024

Apelido apropriado

 

Quem me vê hoje nem imagina que, há muito tempo, meus colegas de trabalho me chamavam por um apelido. Odiava essa alcunha, mas eis que, aqui nessa cama fria do meu quarto, sinto saudade de quando podia correr pela rua. Do apelido, confesso que até sinto falta.

      Comecei na firma numa função que nem carteira assinada tinha, mas que era essencial para que a mercadoria chegasse aos clientes. Entregador de cerveja, foi esse o início da minha trajetória profissional. Não cheguei a presidente da empresa, é verdade, nem mesmo passei perto de ser nomeado diretor. Todavia, o cargo de gerente, após quase uma década, me garantiu uma vida confortável.

     Foi logo no meu primeiro dia, quando cheguei à garagem e me apresentei ao motorista que faria as entregas comigo. Jorge, mas todos o chamavam de Antigo. Não porque fosse o mais antigo na firma, mas por causa da idade, 53, quase um velho naqueles idos.

       Assim que comecei a colocar os engradados na carroceria, Antigo começou a rir e apontar para a minha cabeça dizendo que parecia com uma abóbora. Devo ter feito cara de quem não gostou da brincadeira, pois o apelido pegou que nem chiclete.

          De Abóbora foi um pulo até Abobrinha. Não por conta de possíveis besteiras que eu pudesse dizer nessa época, mesmo porque costumava entrar mudo e sair calado, tamanha a minha timidez. Era por causa do meu físico franzino e minha baixa estatura. Mas devo dizer que nessa época eu estava com 14 anos, quase 15. Se bem que não cresci muito a partir de então, estancando no atual 1,62 m que conservo desde então.

     Após carregar tantos engradados nos ombros, ganhei músculos proeminentes, que, assim que galguei na profissão, foram cambiados por uma cintura mais arredondada. Mal notei no início tal metamorfose, até que precisei trocar as calças e aposentar o cinto. O acréscimo no salário, todavia, ludibriou qualquer autocrítica com a nova silhueta.

    Antes fosse apenas questão de vaidade, mas fui advertido pelo cardiologista. Bobagens de médicos, pensei. Antes fosse isso. Até Gorete, com quem havia me casado há dois anos, começou a reclamar da minha gulodice.

          — Carlos, meu bem, por favor, não coma a pele do frango. Faz mal! Desfiei o peito pra você.

          O prazer daquela gordura toda descia para o estômago, que roncava suplicando por só mais um pouquinho. Entregue completamente aos prazeres da comida, acabei desmaiando sentado à mesa. Meu rosto tombou para frente e foi amortecido sobre a montanha no prato.

          Não me lembro da ambulância chegando, nem da minha chegada ao hospital. Quando voltei da cirurgia, a primeira coisa que vi foi o rosto de Gorete. Ela, com lágrimas nos olhos, disse que me amava. Ao seu lado, o médico que havia me operado.

          — Carlos, você teve um infarto do miocárdio. A cirurgia foi um sucesso, mas você precisa colaborar. A partir de agora, nada de gordura.

          Tenho me cuidado desde então. Já perdi alguns quilos, muito mais por conta do monitoramento da minha mulher. Nada de pele de frango, nada de churrasco com gordurinha. Aliás, Gorete, com aquele lindo sorriso no rosto, veio me contar o cardápio do almoço.

     — Carlos, meu amor, preparei uma abobrinha daqui, ó!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Apelido apropriado" foi publicado por Notibras no dia 27/6/2024.
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quarta-feira, 26 de junho de 2024

Soneto de Capitu (por Dona Irene)

Oh! Flor do céu! O! Flor cândida e pura!

Que enfeita o firmamento e a natureza

Tua vida é brilho; teu amor, beleza 

Que em teu seio minh'alma transfigura


Nos dias triste tua imagem cura

Na dura vida teu amor é fortaleza

És bálsamo que acalma a correnteza

A distância de ti é para mim tortura


Quando chegar a hora da mortalha

Sentindo em ti a força da esperança

Que nem em sonhos pude conceber


Mesmo que a dor nos traga desconfiança

Não nos resta outra escolha senão crer:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

  • Nota de esclarecimento: Em "Dom Casmurro", capítulo 55, Bentinho apresenta o primeiro verso, “Oh flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!”, e o último, “Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”. O desafio era fazer os versos que recheiam o poema, ironicamente abandonado pelo personagem. A famosa Dona Irene aceitou o desafio e criou "Soneto de Capitu".


  • A poesia "Soneto de Capitu" foi publicada por Notibras no dia 26/6/2024.
  • https://www.notibras.com/site/soneto-de-capitu-encara-bentinho-de-dom-casmurro/




Os três amigos e a liberação da maconha

Teobaldo, Onofre e Adalberto, amigos de longa data, costumavam se reunir no bar da esquina. E, entre uma cerveja e outra, surgiu o assunto do momento.

          — Vocês viram?

          — O quê?

          — O STF descriminalizou a maconha.

          — Que absurdo!

          — Os maconheiros vão dominar o mundo.

          — Estamos perdidos. O que será dos nossos filhos e netos?

          — Agora vai ficar todo mundo doidão.

          — Isso é culpa da Madonna!

          — É verdade! Uma pouca vergonha!

          — O Brasil está perdido!

          — A quem interessa a liberação da maconha?

          — Ah, não vou aceitar esses drogados fumando na minha frente. Vou meter bala!

          — Isso é culpa desses esquerdistas. 

          — Bando de maconheiros!

          O bate-papo prosseguiu até que a noite já não era nenhuma criança. Cansados de repetir os mesmos impropérios, despediram-se e cada um tomou seu rumo. 

          Teobaldo, que morava perto, caminhou até seu apartamento. Mal entrou, esbarrou no jarro ao lado, que se espatifou no chão. Com o barulho, Solange, a esposa, acordou assustada. Ladrão? 

          O homem proferiu um palavrão, o que acabou por tranquilizar Solange. Era apenas o Teobaldo chegando mais uma vez bêbado em casa. Ela se levantou e se deparou com os cacos no chão. Quis juntá-los, mas foi impedida pelo marido.

          — Deixa isso aí, mulher!

          — Alguém pode se machucar, Teo.

          — Que se machucar o quê! Tô mandando você deixar essa porcaria aí. 

          Solange, vassoura e pá na mão, começou a juntar os pedaços do jarro, quando recebeu um safanão no rosto. Ela perdeu o equilíbrio e tombou sobre a televisão. Foi aquele barulho. Parece que algum vizinho ligou para a polícia.

          Onofre, ao volante do seu possante Celta, não percebeu quando ultrapassou o sinal vermelho e colidiu com um outro veículo. Por sorte, o homem teve apenas escoriações leves. Por azar, o motorista e a passageira do outro veículo morreram. Maior azar ainda é que, ao tentar se evadir do local, uma viatura estava passando justamente naquela hora. 

          Por coincidência, Teobaldo e Onofre foram conduzidos para a mesma delegacia. Cheios de razão, esbravejaram. Não adiantou. Aliás, até piorou a situação daqueles dois.

          — Vocês deveriam prender bandido!

          — Não sou maconheiro! Sou cidadão de bem!

       Enquanto os amigos dividiam a cela esperando pela audiência de custódia, Adalberto estava em casa. Sem sono, bebeu mais um pouco até que o corpo não aguentou e ele se deitou no sofá. Não acordou mais. Dessa vez, a cirrose o pegou pra valer.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Os três amigos e a liberação da maconha" foi publicado por Notibras no dia 26/6/2024.
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terça-feira, 25 de junho de 2024

Adailton, meu outro irmão

A história do meu irmão começa bem antes de nos conhecermos. Não que isso seja algo incomum entre irmãos, já que, normalmente, um vem antes do outro, a não ser se forem gêmeos, o que não é o nosso caso. No entanto, mesmo em tais casos, apesar do convívio intrauterino, um chega a este mundo antes do outro. 

         Mas deixemos de conversas infrutíferas, pois o que tenho para contar era algo repleto de segredos até há pouco tempo, caso minha mãe não desse com a língua nos dentes. E, ao contrário de causar mal-estar, a fofoca bem-intencionada de mamãe trouxe enorme alegria para todos. 

       Pois lá estávamos nós na casa dos meus pais. Esse nós éramos minha irmã e meu irmão, frutos do casamento dos meus pais. Minha mãe, sempre a que toma as decisões da família, havia nos chamado para uma conversa muito séria. Logo me veio à mente outras situações esdrúxulas que acontecem de tempos em tempos em todas as famílias, mas que, parece, são mais frequentes na minha. 

         — Vocês sabem que seu pai tem um outro filho?

         — O quê? - minha irmã, sempre a mais exaltada, quase gritou.

         — Chama-se Adailton e mora no Maranhão.

        Meu pai, encolhido num canto do sofá da sala, começou a explicar a situação, mas logo foi interrompido por mamãe. Ela contou que, pouco antes deles se conhecerem, meu pai havia tido um breve namoro e, desse relacionamento, nasceu o meu irmão.

       O curioso é que meus dois irmãos e eu, apesar de termos ido à casa dos meus pais na certeza de que escutaríamos alguma catástrofe, acabamos adorando a ideia de ter um outro irmão mais velho, pois já temos o Rogério, que mora no Rio de Janeiro. Por isso, tratamos logo de cobrar do meu pai que ele convidasse o Adailton para passar alguns dias conosco. Meu pai, com lágrimas nos olhos, nos abraçou.

       Os dias seguintes foram de muita ansiedade, até que, finalmente, pudemos conhecer o Adailton. Ele é a cara do meu pai. Sei que perdemos muito tempo, mas agora é olhar para frente e, tenho certeza, viver muitas histórias juntos. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Adailton, meu outro irmão" foi publicada por Notibras no dia 25/6/2024.
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Gente repleta de imaginação

        Aquela gente era cheia de imaginação. Se alguém mais perspicaz parasse um pouco para pensar, logo perceberia que tudo aquilo não passava de devaneio. No mínimo, exagero. 

          É verdade que atravessaram o Atlântico. Bem, com lobos ferozes nos calcanhares, o abismo parece ser a melhor solução. E foi o que os antepassados daquela gente fizeram. Cheios de vontades e coragens, tiveram a petulância de sobreviver, quase nunca de viver. 

          Pior mesmo foi o que os ascendentes daquela outra gente passaram. Nem vontades, nem coragens, apenas resiliências e teimosias. Costas marcadas, o couro se fez grosso. Que fosse assim ou fosse assim mesmo. Não tinha jeito, pois o jeito era esse e acabou.

          Não nos esqueçamos daqueles antigos, cujos descendentes quase desapareceram. Que litoral não era lugar para aquela gente. Que saísse enquanto havia sobrevivente. Terreno em frente à praia é para gente que trabalha, gente que nem aquela gente, que continua cheia de imaginação. 

     Até quando, minha gente, aquela gente, que não se cansa de exaltar que são descendentes, vai querer manter apagada a memória de tanta gente, seja gente forçada, seja gente que já estava por aqui?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gente repleta de imaginação" foi publicado por Notibras no dia 25/6/2024.
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segunda-feira, 24 de junho de 2024

Os enxaquecosos

    

         Nós, os enxaquecosos, sofremos horrores, muitas vezes por mais de 72 horas seguidas. E não sei qual é o seu gatilho, mas o meu é o álcool. Todavia, não quando bebo um copo ou dois. No meu caso, preciso de certo exagero, coisa que raramente acontece. 

          José, meu marido, talvez por conta dos genes herdados da mãe, também padece dos males da enxaqueca. Entretanto, é por conta da intolerância à lactose. O problema é que o danado adora queijos finos, que são muito caros para o nosso parco orçamento, ainda mais os sem lactose. 

          Pois bem, meu esposo gosta de dizer que o sujeito nem precisa ter muito dinheiro, desde que possua amizades endinheiradas. Também não é o nosso caso, pois os que nos cercam são tão ou mais pobres. Mas eis que, por conta de um acaso, José, que é entregador, foi levar algumas caixas para uma festa na parte mais rica da nossa cidade. 

          O meu cônjuge estacionou o veículo de ré para facilitar a retirada dos volumes. Nem precisou fazer força, pois dois empregados da residência carregaram todas as caixas. E, quando o José já estava de saída, um homem, que pareceu ser o proprietário do lugar, gritou.

          Meu marido, imaginando que talvez não tivessem retirado todas as caixas, freou. No entanto, antes de descer do veículo, o tal sujeito apareceu ao lado e lhe entregou duas garrafas de vinho e um queijo de nome enrolado, cheiro de chulé, mas que é uma delícia. Iguaria maior, nunca vi.

          Após a última entrega, meu homem chegou ao nosso humilde, mas lar, doce lar. Nem acreditei naquelas coisas nas suas mãos. 

          — Virou ladrão agora, é?

          — Que ladrão o quê, mulher! Ganhei.

          Depois de falar meia dúzia de palavras para me convencer, ele foi tomar um banho. Aproveitei e arrumei a mesa para degustarmos o vinho e o queijo. Assim que meu marido retornou todo cheiroso, abriu aquele mesmo sorrisão que me conquistou há quase dez anos.

          — Então, gostou?

          — Nem acredito que vamos ter uma noite de rico, meu amor.

          — Arlete, pobre também é filho de Deus      

De gole em gole, secamos as duas garrafas. De pedaço em pedaço, o queijo sumiu. Só sei que, na manhã seguinte, estávamos os dois com aquela dor de cabeça sem fim. Certamente, o queijo era com lactose. Porém, tenho uma tese sobre a bebida. Vinho de rico deve ser bebido em taças de cristal, e nós só possuímos copos de geleia.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Os enxaquecosos" foi publicado por Notibras no dia 24/6/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vinho-fino-em-copo-de-geleia-da-dor-de-cabeca/