Gláucia,
mulher dos seus quase 50 anos, não se lembrava de ter usufruído de brincadeiras
em parques ou mesmo sorrido descalça nas vielas da favela Pernambués, em
Salvador, Bahia. Se puxasse pela memória, apenas horas intermináveis de
trabalho, seja monte infinito de roupas para lavar e passar, seja quantidade
incontável de corredores imensos para varrer, seja até mesmo aquela
inimaginável soma de móveis para lustrar.
Sem tempo para os próprios filhos,
cuidava das crianças das famílias abastadas da cidade. E assim conseguia manter
os seus suficientemente alimentados para não tombarem por inanição. Que
crescessem rápido para ajudarem nas despesas do barraco.
E lá estava aquela mulher dando
mamadeira para o pequeno Juliano, filho da dona Carmita. Enquanto a patroa tricotava
assuntos irrelevantes com as amigas, Gláucia fazia o possível para que o bebê
crescesse parrudo. Nisso, eis que uma das convidadas se aproximou do menino e
lhe tascou um leve beliscão nas bochechas coradas.
— Que criança mais linda, meu Deus!
Gláucia apenas sorriu o único sorriso
que lhe era permitido. Dona Carmita, vendo aquela cena, encheu-se de orgulho e
decidiu participar do interlúdio.
— Luana, a Gláucia cuida muito bem do
Juliano.
— Percebe-se de cara, Carmita.
— A Gláucia nasceu para cuidar de
bebês. Olha a cara de felicidade dela.
Foi aí que a Madalena, outra
convidada, se aproximou e também desejou entrar na conversa.
— Gláucia, além de tomar conta do
Juliano, o que te faz feliz?
— Senhora, nem tenho tempo pra
sonhar, mas, caso tivesse, queria ser pescadora.
— Pescadora?
— Sim.
— Hum! Interessante. Mas por que
pescadora?
— É que, pra mim, a melhor definição
de felicidade é alguém pescando com uma linha presa à uma vara, mas sem anzol,
sentado de frente pra praia. Desde que essa pessoa esteja decidida a só sair de
lá depois que fisgar um canário.
Parece que a dona Carmita e suas
convidadas não gostaram do que a empregada disse. É que, no final daquele dia,
a patroa disse que a Gláucia não precisaria voltar no dia seguinte, pois já
havia arrumado outra para o seu lugar.
- Nota de esclarecimento: O conto "Gláucia, a mulher sem sonhos" foi publicado por Notibras no dia 22/4/2024.
- https://www.notibras.com/site/glaucia-pescadora-de-sonhos-deixa-de-ser-baba/
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