Notou o silêncio. Provavelmente, seu pai não havia voltada da caminhada matinal
na orla da praia de Copacabana. Com certeza, o velho estaria acompanhado da
namorada Elizabeth. Anital gostava da madrasta, reconhecia nela um trampolim
para a melhora da qualidade de vida do seu pai. Além do mais, Elizabeth sempre
se mostrou uma companhia bastante agradável.
Foi
até a cozinha, abriu a geladeira por impulso. Na verdade, não costumava comer
pela manhã. Preferia apenas uma xícara de café bem forte. Abriu o armário e
pegou o pó preto e o açúcar. Apanhou o coador de pano. Não gostava daqueles
filtros de papel, preferia a tradição do velho e bom coador de pano. Gostava de
dizer que café tem de ser feito à moda antiga. Coisa de velho. Talvez.
Pegou uma pequena panela e despejou um
pouco d’água. Ligou o fogão. Em pouco tempo, o líquido incolor começou a
borbulhar. Ele derramou a água sobre o pó de café e apreciou o líquido
escorrendo. Percebeu o aroma penetrando nas suas narinas e sentiu o primeiro
prazer da manhã.
Colocou uma pequena
quantidade de açúcar e mexeu o conteúdo da xícara com uma colher, que logo
levou à boca. Fez aquele barulho típico da degustação e, logo em seguida,
soltou um “ah” de satisfação, o segundo prazer do dia, logo interrompido pelo
chamado do telefone, que insistia em tocar.
Ele deixou o aparelho
barulhento teimar algumas vezes mais, até que, finalmente, atendeu, na certeza
de que fosse seu pai avisando que iria almoçar com Elizabeth, atitude bastante
frequente em qualquer dia da semana. Afinal, eram todos aposentados, maiores,
vacinados, livres de amarras pesadas, sem compromissos mais urgentes. Dois
pombinhos apaixonados.
— Alô?
— Anibal, é você?
— Elizabeth?
— Sim, sou eu. Anibal, você pode me chamar o seu pai?
— Meu pai? Ué, ele não está com você?
— Não! Hoje ele não apareceu pra
caminharmos. Ele não está aí?
— Nã... Deixe-me ver se ele está no
quarto. Na certa, ele ficou com preguiça de se levantar hoje.
Anibal se dirigiu à porta do quarto do
pai. Girou a maçaneta, abriu a porta com certo cuidado e se deparou com o seu
pai deitado como um bebê.
— Pai. Pai!
Nenhuma resposta. Por certo, Silva deve
ter assistido a algum filme até tarde da noite. Anibal chegou mais perto do
corpo em posição fetal, tocou o braço do pai, que estava frio e sem vida. Ele
levou um tempo até que a ficha caiu. Sem qualquer eufemismo, seu pai estava
morto!
O
enterro aconteceu sem grandes formalidades, uma horda de parentes, poucos
amigos, nenhum que regulasse com a idade do falecido, que, para muitos
presentes, já estava até fazendo hora extra, ou seja, havia vivido bem mais do
que qualquer um ali e, por isso mesmo, estava mais que no tempo de deixar um
pouquinho de vida para eles, como se a quantidade de anos vividos fossem
dependentes entre si.
Anibal, Elizabeth, e Agenor, o irmão de Anibal, talvez fossem os únicos que
realmente sentiriam falta do velho. Anibal e Elizabeth, com certeza. Agenor, há
quase seis meses, não via o pai, a última fora numa festa de família; falara
com ele nesse tempo duas ou três vezes no máximo, sendo uma delas pelo menos
para saber se o velho continuava com aquela sirigaita. Sirigaita!
Era assim mesmo que
Agenor sempre se referia à Elizabeth, sem nem mesmo ter tido o cuidado de
conhecer a namorada do pai. Os outros... Ah, os outros só compareceram por mera
formalidade. Teve gente que foi ver o morto por pura curiosidade mórbida.
Afinal, nunca haviam visto um defunto de perto. Pelo menos não tão de perto,
onde pudessem até tocar para sentir toda a frieza e a dureza do destino que a
todos acaba por nos atingir, seja pobre, seja rico; feio ou bonito; gordo ou
magro; homem ou mulher; jovem ou velho; carrasco ou condenado; judeu ou
palestino; preto ou branco: a Morte.
— Engraçado – disse uma vizinha do
falecido.
— O que é engraçado? – quis saber um outro
presente.
— Tinha me esquecido do cheiro de gente
morta. Parece até cheiro de hospital.
— É
por causa do algodão com éter que se põe nos buracos – disse uma terceira
pessoa, arrancando risinhos dos que estavam próximos.
— Buracos? Será que eles não se esqueceram
de algum buraco aberto? – um homem veio se juntar à trupe, gerando mais uma
ondinha de risadas, senão indiscretas, ao menos inconvenientes.
Alheia a tudo e a todos estava Elizabeth,
que chegou a passar mal. Ela foi amparada por Anibal, que tentou se mostrar
forte, aliás, mais forte do que realmente estava se sentindo. Nilson, que
conhecia Anibal de longa data, sabia que o amigo estava passando pelo seu maior
martírio. Ele também sofria, já que sentiria falta daquele que, muitas vezes,
agira como se fosse seu próprio pai.
Um funcionário do São João Batista se
aproximou da família do defunto.
— Já está na hora.
— ... – Anibal apenas olhou o homem
postado à sua frente, não sabendo o que fazer, ou melhor, sabia, mas não
conseguiu conceber a ideia de que a hora havia chegado, a despedida final do
corpo do seu pai era aquela.
— Anibal, é melhor a gente ir – Agenor,
que já não suportava continuar naquele lugar tão sombrio, interveio.
— ... – Anibal segurou as mãos rijas e gélidas do corpo deitado à sua frente, o mesmo corpo que um dia havia sido do seu pai, e chorou pela última vez. Nem mesmo quando fecharam o caixão, nem mesmo quando empurraram o baú funesto para a gaveta 52 do cemitério São João Batista, Anibal conseguiu derramar nem uma lágrima sequer. Estava seco, uma torrente árida havia tomado conta de sua alma. E assim que se manteve, até que, quase duas décadas depois, finalmente, ele foi se deitar ao lado do seu velho.
- Nota de esclarecimento: O conto "Deitado como um bebê" foi publicado por Notibras no dia 2/4/2024.
- https://www.notibras.com/site/anibal-surpreso-acha-pai-deitado-como-um-bebe/
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