
Minha avó chegou carregando uma caixa de sapato. Pela aparência gasta,
imaginei que receberia mais um novo velho par de algum primo, já que eu havia
nascido com a sina dos mais novos: herdar roupas e calçados que já não serviam
nos maiores.
Ela me estendeu a caixa, que peguei provavelmente com um
sorriso forçado nos lábios. No entanto, logo percebi que algo se mexia ali
dentro. Curioso que era, tratei logo de tirar a tampa e me deparei com uma
linda cadelinha quase toda marrom, caso não fosse por aquelas manchas nas
patas, que pareciam luvas e meias.
Não me contive e a peguei no colo e encostamos nariz com
nariz. O dela era de um geladinho, que, a princípio, me reportou aos cubos de
gelo que mamãe adorava mastigar. Entretanto, quase ao mesmo tempo, senti aquele
cheiro, verdadeiro fetiche que os filhotes de cachorro despertam até mesmo no
mais insensível coração de nós, meros humanos.
Minha tia Doroteia se aproximou e me perguntou que nome eu
daria para a minha cachorrinha. Pipocaram sugestões de todas as bocas
presentes: Princesa, Luna, Diana, Safira... Até que minha avó, do alto da sua
perspicácia, tocou os pés da minha, a partir daquele momento, maior
companheira. Não tive dúvida e balbuciei, quase ao mesmo tempo em que os lábios
da minha avó se mexiam: Meioca.
_ Meioca? Que nome esquisito! - disse
tia Doroteia.
_ Meioca, sim! Se o Gustavinho escolheu, tá escolhido! -
minha vó falou e, logo, todos entenderam que estava falado.
Dos meus 8 aos 21, Meioca e eu passamos a maior parte
do tempo juntos. É verdade que, assim que passei no vestibular, nossas brincadeiras
se tornaram menos frequentes, mesmo porque fui morar na cidade vizinha. Mas,
sempre que voltava para casa, íamos ao lago nos refrescar. E, nos seus últimos
meses de vida, eu a carregava no colo e sentávamos debaixo de uma mangueira,
cujas raízes tocavam as margens, como se dedos fossem.
Meioca já não possuía aquele vigor, mas seus olhos,
apesar de cada vez mais tomados pela catarata, continuavam a me acompanhar,
como se me protegendo de algo enquanto eu dava um mergulho. Era nítido seu
alívio quando eu retornava para seu lado, tamanha sua euforia. Dividíamos um
sanduíche de carne, até que a tarde se esvaía e eu tomava minha amiga nos
braços e retornávamos para casa, onde nos esparramávamos no sofá e devorávamos
uma bacia cheia de pipoca, enquanto assistíamos a mais um programa sobre a vida
selvagem.
Não sei se a Meioca entendia o que era
aquele monte de animais na televisão, mas sempre se mostrou muito interessada,
especialmente quando surgia algum lobo. Talvez ela soubesse que aquele animal,
muito maior do que a minha amiga, possuía uma ligação forte com a sua
existência.
Outros bichos que faziam os olhos de
Meioca brilharem eram tigres, leões, onças e leopardos. Ela chegava a se
erguer, orelhas voltadas para a tela. Mamãe, quando notava esses momentos,
falava sempre a mesma frase: "Meioca, essas feras podem devorá-la!"
Minha cadela encarava minha mãe, como se dissesse: "Que nada! São apenas
gatos!"
Foi no outono de 1982, quando Meioca fechou os olhos pela
última vez. Minha mãe chorou por nós dois, já que eu só fiquei sabendo no final
de semana, quando cheguei à nossa casa. Estava na faculdade e, antes de eu
abrir o portão, percebi que algo estava diferente. Meioca não me esperava na
varanda, como sempre. Também notei um pequeno monte de terra debaixo da
goiabeira próxima ao muro. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, e inúmeras
outras fizeram o mesmo caminho.
Naquele dia, prometi que jamais teria outro cachorro,
tamanha a dor que senti e que me acompanha desde então. Quase duas décadas
após, resisti aos apelos dos meus filhos, que tanto me imploraram por um
cãozinho. Mantive-me firme até a semana passada, quando minha primeira neta
veio até mim: "Vovô, o papai não quer me dar um cachorro. O senhor me
dá?"
Pois
é, eis que aqui estou, perto de completar 60 primaveras, com essa caixa na mão,
onde uma criatura peluda não para de abanar o rabo. Minha neta vai ter uma
surpresa daquelas e, tenho certeza, terá um companheiro inseparável por um bom
tempo.
- Nota de esclarecimento: O conto "Meioca, a cachorra que me acompanhou por anos" foi publicado por Notibras no dia 28/4/2024.
- https://www.notibras.com/site/meioca-a-cachorra-que-me-acompanhou-por-anos/