— Ana Lúcia, pare de rabiscar!
Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a
criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a
professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna
possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos
seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris.
O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto
é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a
emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do
bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte.
Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu
João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de
agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente.
Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à
feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras.
Aconteceu no final de setembro, quando a
primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a
artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama,
onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.
Juntaram os panos e, dois anos após, veio a
pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora
para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas
e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava
a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe
forças.
As décadas seguintes voaram sem que Ana
Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela
estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes
de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.
Que nem menina, a velha abriu o presente e se
deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados
sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias
seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente.
É verdade que, de vez em quando, imaginava sua
saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já
agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos
estão ansiosos para tal evento. Pois é, parece que os sonhos não têm data de
validade.
- Nota de esclarecimento: O conto "Os rabiscos da Ana Lúcia" foi publicado por Notibras no dia 27/7/2024.
- https://www.notibras.com/site/rabiscos-da-infancia-vem-sem-prazo-de-validade/
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