sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Peripécias de um viúvo

         

         Deoclécio, que há pouco perdera a mulher, Lourdes, companheira de quase 40 anos, andava cabisbaixo. Já havia pensado em dar cabo da própria vida, mas faltava-lhe ímpeto para tal. Não se engane, no entanto, pois o casal, após os filhos criados, até pensou em separação, coisa que definitivamente foi deixada de lado. Muito tempo de união, mesmo que aos solavancos, os corpos se acomodam e consideram deveras trabalhoso um possível recomeço. 

         Além das memórias e dos álbuns de fotografias, o viúvo manteve o falante papagaio Lourival, presente de casamento. A ave sempre pendeu para o lado de Lourdes, que lhe retribuía os agrados com pão molhado no leite. 

          — Lourdes, meu amor, o veterinário já falou que isso faz mal pro papagaio.

          — Hum! E desde quando veterinário sabe o que é bom pro Lourival?

          — Ué, ele estudou pra isso.

          — Bobagem! Quem sabe o que é bom pro meu menino sou eu.

         A despeito de fazer bem ou mal, o fato é que o papagaio quarentão aparentava dar e vender saúde. E, apesar da ausência inesperada de Lourdes, ainda mantinha certa distância do Deoclécio, que até tentou se aproximar. No entanto, após algumas bicadas, o homem declinou da ideia, apesar de não guardar rancor do Lourival. Tanto é que, não raro, fritava alguns pedaços de aipim e oferecia um quinhão para o louro, que não fazia desfeita. 

          Certo dia, enquanto degustava aipim com bons goles de café, o velho percebeu que o tempo havia mudado. Uma lufada de vento balançou a cortina, fazendo com que a parte de baixo do tecido lhe tocasse a face. Levantou para fechar a janela, quando constatou que o céu estava carregado de nuvens densas e escurecidas. Logo começou a cair um temporal.

          Transeuntes corriam de um lado para o outro em busca de abrigo. Nisso, uma jovem, não mais de 30 anos, talvez nem tenha percebido que um livro acabara de cair dos seus braços, que carregavam vários outros volumes. Aquela cena chamou a atenção de Deoclécio, que se sentiu incomodado por ninguém se preocupar em pegar aquele exemplar, que parecia castigado pelos pingos cada vez mais fortes. 

            O idoso tentou avisar as pessoas, mas ninguém parecia lhe dar bola. Por impulso, abriu a porta do apartamento, desceu as escadas e, decidido a resgatar aquele pobre livro, atirou-se debaixo da tempestade. Raios, trovões, água que batia sem piedade na pele. Deoclécio, afinal, conseguiu chegar ao lado da vítima. Agachou-se, tomou o livro em suas mãos, o segurou junto ao peito e, curvado, voltou correndo para o seu edifício. 

          Mal entrou no apartamento, Deoclécio pegou uma toalha e tentou enxugar ao máximo capa, folhas, tudo. Tudo encharcado. Ele não sabia se iria conseguir salvar aquele livro. Ainda assim, teve a ideia de deixá-lo atrás da geladeira, como fazia com suas meias úmidas, a fim de secá-lo. 

           Torcedor de nenhum time, resolveu buscar um filme na televisão. Por sorte, percebeu que iria começar um clássico do cinema nacional: "Matar ou correr", com Oscarito e Grande Otelo. Pensou em convidar o Lourival para ver o filme, mas constatou que o papagaio já estava nos braços de Morfeu. 

          Pipoca pronta, Deoclécio abriu uma lata de refrigerante e se acomodou no carcomido, mas aconchegante, sofá. Enquanto assistia ao filme, o sujeito fez uma viagem até a sua infância, quando teve seu primeiro contato com o cinema, justamente com "Matar ou correr". E, desde então, se apaixonou pela famosa dupla de atores. 

          Após o filme terminar, Deoclécio ainda buscou algo mais na televisão. Mudou de canal diversas vezes até que, sonolento, adormeceu. 

        Deoclécio acordou e buscou o relógio de parede. Quase meio-dia. Atordoado, levantou-se, cumprimentou o Lourival, encheu o pote de ração, trocou a água e lhe serviu o tradicional pão embebido em leite. Resolveu tomar banho. Quem sabe, assim, despertaria de vez?

          Enquanto a água quente caía sobre o rosto, Deoclécio pensava na vida. Sentiu-se desolado, como se todas as ilusões tivessem lhe sido arrancadas. Foi aí que, de repente, arregalou os olhos e se lembrou do livro. 

          Saiu do box sem desligar o chuveiro, correu até a cozinha, olhou atrás da geladeira e pegou o exemplar, que parecia recuperado. Seco. Completamente seco, ao contrário do homem, que, apressado, nem se lembrou de pegar a toalha. 

            Deoclécio acabou escorrendo por conta da água que escorria por seu corpo. Caiu de bumbum no chão, com o livro ao seu lado. Foi aí que ele leu o título: "Despido de ilusões", de um certo Eduardo Martínez.   

  • Nota de esclarecimento: O conto "Peripécias de um viúvo" foi publicado no Notibras no dia 12/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/peripecias-de-um-viuvo/

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Gêmeos perversos

 

          Thiago e Matheus, gêmeos univitelinos, viviam aprontando desde a mais tenra idade. E todos ao redor pareciam se divertir, mas não porque as brincadeiras eram do agrado. Era simplesmente por uma questão de pertencimento. Pois é, os irmãos nasceram herdeiros. 

          Thiago, cinco minutos mais velho, talvez o mais malévolo, tendia a provocar medo nas pessoas, enquanto o caçula, vez ou outra, parecia pender para a candura. O problema é que ele era, de certo modo, dominado pelo irmão, que sempre o puxava de volta para o lado vil. 

            — Deixa de ser medroso, Matheus! 

             — Não é medo.

             — Então, é o quê?

             — Você não nunca sente remorso?

              — Remorso?

              — É. Você viu como a Raimunda ficou da última vez.

              — E daí?

              — E daí? Você ainda pergunta e daí?

              — Tu é mesmo um molengão!

              — Não sou. Mas é que...

              — É que o quê, Matheus?

              — Às vezes me dá pena dessa gente.

              — Pena? E tu agora é galinha? Có-có-có! Có-có-có!

              — Para!

              — Só paro se você vier comigo.

              — Tá bom! Mas vai ser a última vez, hein?!

             Nessa época em questão, verão de 1992, os dois, então com 15 anos, estavam passando alguns dias na fazenda dos avós, localizada em Padre Bernardo, município goiano próximo ao Distrito Federal. Provavelmente entediados pela calmaria do local, resolveram dar um susto na Josefina, a Fina, cozinheira da propriedade. 

            Mulher de estatura baixa, corpulenta, cuja face arredondada passava só bondade. Não poderia ser considerada velha, apesar de já passada com certa folga dos 50 anos. Aparentava certa timidez, mas sabia sorrir quando diante de uma boa conversa com os patrões, Esther e Hélio. 

          A ideia era esperar que todos dormissem, o que acontecia quase sempre antes das 22h. E foi o que ocorreu naquela noite de lua nova, o que tornou a região pura escuridão.

            — Vamos, Matheus. Já deu a hora.

            — Você tem certeza?

            — Do jeito que está quieto, até se cair uma pétala dá pra se ouvir.

            — Ok.

            O quarto da Fina ficava na parte de trás da casa, logo abaixo do quarto dos rapazes, no segundo andar. Ela gostava de dormir de janela aberta, pois era muito calorenta. E Thiago e Matheus, com uma faca e muita paciência, haviam tirado todo o conteúdo de uma melancia, feito dois grandes olhos, um nariz e uma boca com dois dentes, um em cima, outro embaixo. Mais ou menos como os estadunidenses fazem com a abóbora no tal Halloween. Completaram a arte com uma lanterna e um pequeno toca-fitas na parte interna e prenderam um gancho amarrado a uma corda. 

            Tudo pronto, Matheus acionou a tecla do aparelho, que começou a reproduzir a voz do Zé do Caixão. Logo em seguida, com a ajuda do irmão, começou a descer a melancia iluminada pela luz da lanterna. Os adolescentes tentavam abafar o riso, até que, de repente, sentiram que alguém havia puxado a melancia com tanta força, que os dois, pegos de surpresa, acabaram soltando a corda. 

            Sem saber o que fazer, Thiago e Matheus voltaram para cama e fingiram dormir até que, finalmente, adormeceram. Só despertaram quando a manhã já avançava, e a avó os chamou para tomar café. Cheios de fome, os irmãos desceram a escada rapidamente e foram até a cozinha, onde, para surpresa dos dois, só encontraram a avó. Thiago, então, a interrogou:

            — Ué, vó, cadê a medrosa da Fina?

            — Medrosa? Por que tá falando que a Fina é medrosa?

            — Ah, não é nada, não, vó. 

            — Pois saiba você que a Fina não tem medo de nada.

            — De nada? Nem de assombração?

            — Assombração? Hum! Thiago, você deve estar de brincadeira. A Fina nasceu no caos.

            Antes que os gêmeos pudessem dizer algo, eis que a porta se abre e surge a Fina. Ela havia passado a noite na casa de uma das filhas, na cidade, o que deixou o Thiago e o Matheus confusos. 

            Fina tratou de encher uma xícara com o café e, virando-se para os jovens, disse:

            — Não sei vocês, que são lá de Brasília. Mas, aqui na roça, ninguém resiste ao café da dona Esther. Uma delícia só.

            A cozinheira sorriu e deu uma piscadela para os gêmeos, que, olhos arregalados, sentiram um frio correr por todo o corpo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gêmeos perversos" foi publicado no Notibras no dia 11/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/gemeos-perversos/

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Elói, o namorado trapalhão

        Brasília é reduto de gente vinda de todas as partes do país e, por isso mesmo, não poderiam faltar os oriundos do estado mais meridional, o Rio Grande do Sul. E Kelly Schmidt, cujo parentesco com o grande poeta Frederico Augusto é nenhum, ainda guria, teria parado na capital por conta de remoção do seu papai, Gumercindo, para um setor do Banco do Brasil no início da Asa Norte.

          Kelly, o pai e a mãe, Aurora, vieram de Passo Fundo, considerada a cidade mais gaúcha. Não à toa, os três faziam questão de manter a tradição. E ai de quem viesse com gracinha sobre os hábitos sulistas. Era briga na certa. 

          Pois bem, a bela Kelly, cujos cabelos loiros pareciam ter sido arrancados de espiga de milho, andava de namorico com o Elói, cujas origens eram do Nordeste, mais precisamente de Sobral, cidade do Ceará famosa por ser berço de algumas celebridades, entre as quais o saudoso Belchior.

          Mas não pense você que o gajo era o único interessado na gata do Sul. Nananinanão! Havia pelo menos meia dúzia de rapazes de olho, mas Kelly, após quase uma semana avaliando as possibilidades, optou pelo cearense. Elói, que vem do latim eligere, por sinal, significa o escolhido, o eleito.

          Após quase dois meses de namoro, Kelly decidiu que era hora de apresentar o amado aos pais. Seria justamente no domingo seguinte, quando Gumercindo iria preparar um churrasco para os colegas de banco. 

          Elói, nerd da tecnologia, resolveu aprender um pouco da cultura gaúcha para não fazer feio diante dos sogros. Buscou na internet um pouco do vocabulário típico sulista. Treinou algumas palavras em frente ao espelho. Afinal, queria parecer o mais natural possível.

          O gajo não queria ficar borracho e, por isso, precisaria controlar a bebida, ainda mais porque não teria como chamar um táxi, e iria mesmo voltar de banzo. Pensou em levar umas bergas, mas declinou, pois imaginou que o sogro pudesse achá-lo um chinelão. 

          Churra, cusco, mandar pra banha, cacetinho, chima, maniático, posudo, pilchado, sangria desatada... A lista, de tão enorme, acabou provocando certa confusão no Elói. Por isso, ele decidiu que já estava de bom tamanho.

           Mal chegou à casa da namorada, Elói estranhou a vestimenta do sogro, que estava paramentado que nem gaúcho típico: bombacha, camisa, botas, chapéu, chiripá e colete. Só não estava de pala porque a temperatura estava aprazível. 

          Apresentado aos anfitriões, Elói, a princípio, refugou. Todavia, pigarreou e, não tardou, pareceu ser o dono da situação.

          — Satisfação, seu Gumercindo. Satisfação, senhora Aurora. Aliás, agora sei de onde a minha prenda puxou tanta belezura. 

          Gumercindo observou o quase guri, abriu um sorriso por debaixo do vasto bigode e, talvez para não causar constrangimento desnecessário, lhe ofereceu um lugar à mesa. Não demorou, o dono da casa pegou o porongo com mate e pediu para a filha entregá-lo ao namorado. A partir desse instante, a coisa começou a desandar. Elói, com a cuia em mãos, tentou buscar pela memória o nome daqueles apetrechos. 

        — Seu Gumercindo, como é mesmo que a gente chupa esse canudinho?

        O homem, cara de reprovação, arregalou os olhos, deu duas ou três bufadas, mas foi contido por Aurora, que lhe tocou o braço.  Entretanto, Elói, que percebeu o constrangimento causado, quis consertar a situação, mas a emenda saiu pior que o soneto.

          — Seu Gumercindo, me perdoe! Como sou tapado! Sei que o nome certo desse canudinho é cacetinho. E aprendi que cada um chupa um pouco e vai passando pro outro. Depois de mim, quem vai ser o próximo a chupar o cacetinho? Vai ser a senhora, dona Aurora?

        Pelo visto, ficou óbvio que o romance não vingou. Kelly trocou de namorado rapidinho. Um pernambucano. E, antes de apresentá-lo aos pais, resolveu aguardar pelo menos seis meses para que o sujeito não cometesse as mesmas barbaridades do Elói. Aliás, ele ainda está solteiro.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Elói, o namorado trapalhão" foi publicado no Notibras no dia 10/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/eloi-o-namorado-trapalhao/

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Paixão à primeira vista ou quase isso

       

        A casa estava abarrotada de parentes e amigos mais próximos. Regina e Osmar, os anfitriões, distribuíam sorrisos para todos, como se fossem astros de cinema prestes a ganhar o Oscar. Verdade que não era para tanto. Mas a verdade é algo que, não raro, é mera ilusão. 

Bodas de Ouro! Pois é, há exatos 50 anos, os pombinhos viviam a vida que todos acreditavam ser a mais pura perfeição. Também não que fosse abominável ou algo do tipo, apesar dos momentos, digamos, aborrecíveis. Quem nunca os têm, afinal?

          A versão oficial daquele romance afirmava de pés juntos que Regina, perambulando pela praça em frente à Catedral, em Brasília, numa manhã ensolarada de setembro de 1973, se deparou com um belo rapaz de cabelos desalinhados e profundos e enigmáticos olhos claros. De tão impressionada que ficou, não conseguiu evitar de se apaixonar perdidamente por Osmar. Mas não pense que a história acabou por aí. Nananinanão!

          Osmar, por sua vez, tentando proteger o rosto dos raios solares, virou-se e, de repente, se viu diante da mais graciosa mulher que jamais imaginou existir. Fisgado, deixou de lado a costumeira timidez e puxou conversa, que se iniciou de modo inusitado.

         — Não pensei que você viesse.

         — O quê?

         — Você veio.

         — Vim, mas... Peraí! A gente se conhece?

         — A partir de agora, sim. Me chamo Osmar.

          Ele estendeu a mão, o que fez Regina receber o gesto com um sorriso.

         — Prazer, Osmar. Sou a Regina. 

         Apresentações feitas, Osmar a convidou para chuparem um picolé no carrinho de um ambulante logo ali. E foi assim que o romance teria começado. Bem, essa é a versão conhecida e aceita como verdadeira, mesmo porque não há motivo para dúvidas. 

          Não obstante tal história já sacramentada, há quem diga, à boca pequena, que a coisa não foi bem assim. E apenas para matar a sua curiosidade, que percebo pelos olhos arregalados, farei de você um dos raros conhecedores do que realmente aconteceu.

            De cara, já digo que essa coisa de paixão à primeira vista não aconteceu. Regina, que naquele dia soubera que Joaquim, um primo por quem era apaixonada, havia anunciado que iria se casar com outra, ficou possessa. O quê? Aquilo não era possível! Ainda mais depois de promessas feitas por ele para Regina debaixo da jabuticabeira do quintal da casa dos avós. 

            Revoltada pela traição, Regina saiu sem rumo, mas com o intuito de ir à caça de um homem para casar. Não importava quem aparecesse pelo caminho. 

            De tão sem rumo, foi parar em frente à Catedral. Religiosa que sempre fora, pensou até em entrar para buscar consolo espiritual. Entretanto, antes que o fizesse, notou a presença de um rapaz mais alto do que a maioria, olhos claros, que contrastavam com os cabelos quase negros. Ela o observou por uns bons 20 minutos. O que ele estaria fazendo ali? Parecia angustiado com algo. Teria sido traído também?

            Com ímpeto de chamar atenção, a mulher começou a andar de um lado para o outro, como se estivesse perdida. Não adiantou. Cantarolou, mas nada do sujeito sequer tirar os olhos do horizonte. Quando pensou em assobiar, eis que uma nuvem saiu da frente do Sol, que jogou luz sobre o rapaz, que virou o rosto e, aí sim, percebeu a bela Regina, que lhe sorriu. 

            Desconcertado que ficou, a princípio, o gajo imaginou que aquele sorriso era para outrem, tanto é que ele virou o rosto em várias direções até que, finalmente, se deu por convencido. O sorriso era mesmo para ele. Tomou coragem e, então, deu alguns passos em direção à jovem, estendeu a mão e sorriu.

               — Osmar.

              — Regina.

           Realmente Osmar a convidou para chupar picolé. Todavia, como o dinheiro naquele tempo lhe era curto, só deu para comprar um, que Regina fez questão de dividir com o quase estranho. 

              O romance aconteceu, apesar do primeiro beijo só ter acontecido dois meses após o primeiro encontro. Seja qual versão você preferir, o casamento aconteceu, já que os dois estão comemorando Bodas de Ouro. Pois é, isso não é algo que se vê todos os dias. E pensar que tudo isso aconteceu por uma punhalada no coração.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Paixão à primeir vista ou quase isso" foi publicado no Notibras no dia 9/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/paixao-a-primeira-vista-ou-quase-isso/

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Troca de confidências

    

        O que me causa angústia não é a ausência, mas a incerteza. Certo desconforto. Não é solidão, isso jamais me assustou. Todo mundo é solitário, mesmo na pipoca do carnaval de Salvador. 

        Pois foi isso que falei para Clarice, que ficou ali em pé, aqueles olhos castanhos lindos me fitando, como se desejasse entender o que se passava na minha mente. Devo ter esboçado um sorriso, já que esse foi o seu próximo gesto. Talvez imaginasse que eu estivesse brincando ou, então, tentando parecer mais inteligente do que sou. 

        Medíocre. É isso que sou. E não me interprete mal, pois a maioria de nós o é. Diria que praticamente toda a humanidade, tirando uns loucos que conseguem vislumbrar histórias dentro de bolhas de sabão. Por que disse isso? Não faço ideia, mas sei que é uma comparação esdrúxula, ainda mais porque já passei da idade de ficar na praça fazendo bolhas de sabão. 

      Seria divertido, é verdade. Mas velho que sou... Não tão velho assim, você poderia dizer. Entretanto, logo chegaria um desalmado para acusá-lo de estar fazendo advocacia em causa própria.

        Pois é, meu amigo, envelhecemos. Também, quem mandou chegarmos a este mundo há tanto tempo? Como se fosse possível escolher o momento do nascimento... Tolice, perda de tempo, use o termo que você quiser. Nada vai mudar o fato de já termos dobrado o Cabo da Boa Esperança há pelo menos uma década. 

      Se acumulamos experiência e sabedoria? Para que sermos tão condescendentes com nossa notória decrepitude? Deixemos aos outros o cinismo da contemporização. Somos amigos, não precisamos de autoindulgência. 

     Clarice disse que me ama. Ama muito. Não duvido nem acredito tanto assim. Há momentos em que posso me fiar cegamente na afirmativa da minha, digamos, quase esposa. Não juntamos as escovas de dentes ainda, cada um possui seu canto, o que me deixa confortável. Você também não sente necessidade de ter o seu próprio espaço? Sim, não refuto que também sinto falta de maior cumplicidade, de compartilhar aquela bacia de pipoca maratonando as séries que ela adora. 

         Veja bem! Não que não goste de série. Verdade que não gosto, não vou mentir. Nunca consegui pegar um ou dois biscoitos e depois guardar o pacote. Tudo precisa ter início, meio e fim. E esse lance de temporadas, cada uma com aquele monte de episódios... Ih, não nasci para isso. Mas a Clarice ama.  

         Se emagreci? Você acha? Talvez tenha razão. Não me peso há dias. Mas você deve ter mesmo razão. A Clarice me engorda. Ela sempre tem aqueles horários rígidos para comer. E ai se pula uma refeição... Ih, o mundo parece que vai acabar. Com ela longe, até me esqueço de comer direito. 

         Café não pode faltar aqui em casa. E sou exigente. Precisa ter qualidade. Sim, um bom café e um bom livro. E paz para degustar os dois. 

         É verdade, meu amigo. Clarice me ama. Ama muito. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Troca de confidências" foi publicadono Notibras no dia 8/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/troca-de-confidencias/

domingo, 7 de dezembro de 2025

Jonas, Lorena e o bilhete

    

Os sonhos de mudar o mundo ficaram para trás. Não que Jonas tivesse planos de se tornar Napoleão, mas, quando era menino o suficiente para imaginar tolices, chegou a pensar que fosse indestrutível, até que se percebeu apaixonado pela primeira vez. Lorena, filha única dum casal austero.

          Sem saber se era correspondido, o agora adolescente titubeou por quase um mês, até que, por um desses acasos na fila do pão, percebeu que a garota dos seus devaneios acabara de deixar cair um pedaço de papel. Ele sentiu que era a oportunidade perfeita para se aproximar e, então, abaixou-se, pegou o objeto e, quando já ia entregá-lo, eis que Lorena, olhos arregalados, praticamente fugiu da padaria. 

          Ninguém pareceu notar aquela situação, no mínimo, esdrúxula. Atordoado, Jonas foi resgatado ao planeta Terra quando foi cutucado no ombro por uma senhora logo atrás na fila.

            — Ei, é a sua vez.

            O distraído pediu os quatro pães de sempre e, no caminho para casa, se lembrou do papel. Foi aí que percebeu que aquilo era um breve bilhete.

Domingo, depois da missa, atrás da igreja. 

           Jonas, pela primeira vez na vida, sentiu-se homem. Sim, aquele momento era divisor de águas e, finalmente, experimentou a sensação de pertencimento. Um homem! E, ainda por cima, que tinha namorada. 

          A semana se arrastou como se agisse de propósito contra os anseios do jovem apaixonado. Porém, apesar da demora, o domingo se fez presente. E chegou carregado de desejos, próprios da fase ornada por turbilhão de hormônios. Certa insegurança, é verdade, mas que não seria capaz de impedir o rapazola de realizar vontades reprimidas. 

          Mesmo não sendo religioso, Jonas fez questão de assistir ao culto. E arrumou local não tão perto da moça. Não era de bom alvitre provocar cizânias desnecessárias, já que Lorena estava sentada ladeada pelos pais. 

         Aguardou o padre Júlio se despedir dos fiéis, quando notou que o pai e a mãe de Lorena começaram uma conversa com outro casal, momento em que guria aproveitou a oportunidade e saiu do recinto. Jonas, mesmo com as pernas bambas, foi atrás da amada. E, durante o curto percurso, não havia como não pensar em como a garota era esperta. 

          Assim que pôs os pés para fora da igreja, Jonas pareceu ter perdido Lorena de vista. Seja como for, o bilhete não deixava dúvida e, decidido, o adolescente se dirigiu para os fundos da igreja. Mal chegou, encontrou certa dificuldade para acostumar a visão ao ambiente escuro. Apertou os olhos e, só então, conseguiu entender toda aquela situação.

          Lá estava a bela Lorena, o amor da sua vida, aos beijos e abraços com Pedro. O bilhete, afinal, não era para ele, mas para o sujeito que estava logo à sua frente na fila do pão. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Jonas, Lorena e o bilhete" foi publicado no Notibras no dia 7/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/jonas-lorena-e-o-bilhete/

sábado, 6 de dezembro de 2025

Gregório, o ás da máquina de escrever

   

          Não sei se você viveu os conturbados anos 1970, quando um curso de datilografia era praticamente um divisor de águas entre conseguir ou não um emprego em alguma repartição. E, quanto mais ágeis fossem os dedos, maior era o status do funcionário.

        Não pense você, no entanto, que era todo mundo que conseguia se entender bem com aquela que hoje é alcunhada de trambolho, mas que antigamente era a tal máquina de escrever. Alguns, seja por falta de traquejo ou, não duvido, seja até por certa timidez, se desmanchava em nervosismo quando as digitais tocavam nas teclas. E a coisa desandava de vez quando o texto era ditado por um superior hierárquico. 

        Gregório, definitivamente, era o mais notável no ofício. Não importava quem fosse ditar, fosse até mesmo Luís Carlos que, por conta da fala, de tão apressada, era apelidado de Ligeirinho. 

      Após anos recebendo elogios, Gregório passou a colecionar certos sentimentos. A princípio, aparentemente bons: autoestima, brio, dignidade, satisfação, honra e até mesmo boa dose de pundonor. Todavia, como nem tudo na vida é um passeio no parque num domingo ensolarado, eis que a altivez começou a se apoderar do se âmago. Pior, a arrogância misturada com vaidade e pitadas de presunção e essência de desdém, até que o sujeito perdeu todas as estribeiras e passou a não disfarçar a própria soberba. 

        Não obstante o modo desprezível de agir, Gregório possuía cartaz com a alta cúpula do escritório. Tanto é que, numa sexta-feira, foi chamado às pressas para digitar duas ou três laudas na sala de um dos diretores. E lá foi o homem, todo empertigado, cumprir mais uma missão com seus dedos infalíveis. 

        Já no último andar, Gregório caminhava pelo corredor em direção ao seu destino, quando passou por uma sala aberta e viu uma mulher em frente a uma máquina de escrever último modelo. Curioso, ele se aproximou e, ao perceber que a fulana, dedos indicadores em riste, teclava lentamente, tamanha a dificuldade de encontrar as letras, fez um comentário jocoso.

        — Do jeito que você bate à máquina, minha senhora, não demora, vai ser mandada embora.

        A mulher encarou o intrometido e, com um sorriso sarcástico nos lábios, disse:

        — Meu amigo, se liga! Sou cargo comissionado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gregório, o ás da máquina de escrever" foi publicado no Notibras no dia 6/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/gregorio-o-as-da-maquina-de-escrever/

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Arnaldo Carvalho ou Wendell Abreu?

    

Arnaldo Carvalho, jornalista de renome e com trânsito na alta cúpula do poder em Brasília, poderia usufruir de uma aposentadoria regada aos prazeres mundanos da vida. Mas não! Faltava-lhe algo, próprio de quem havia saído de Del Castilho, bairro do subúrbio carioca: o reconhecimento popular.

          O sujeito, no entanto, não poderia simplesmente mudar o estilo austero, que já era sua marca registrada. O que iriam pensar os seus fiéis leitores? Certamente diriam que estaria acometido de demência ou Alzheimer ou até coisa pior. Sim, um surto psicótico, talvez provocado por uma mistura de medicações controladas. Nada que um médico, com a devida paga, não pudesse atestar. 

          Madrugada de sexta-feira, princípio de novembro, adormeceu, apesar do temporal carregado de raios e trovões. Acordou quando a manhã galopava para a hora do almoço. Espreguiçou-se, como há muito não o fazia. Sorriu e teve ímpeto de se inscrever em alguma maratona, mas logo declinou dessa loucura. Logo ele, cujo único esporte sempre fora digitar laudas e laudas para os diversos jornais que havia trabalhado. No máximo, uma pelada nos finais de semana, quando se sentava confortavelmente em uma cadeira à margem do campo, copo de cerveja na mão, de onde incentivava os colegas de redação ou, no máximo, era guarda-meta.

          Quando entrava em campo, Juarez, fervoroso torcedor do Botafogo, chamava Arnaldo de Wendell, antigo goleiro dos anos 1970. Arnaldo, flamenguista roxo, se segurava para não xingar o amigo. Queria, por motivos óbvios, ser chamado de Raul, mas não rolava. 

          Pois lá estava o Arnaldo com uma generosa xícara de café preto, duas torradas e, por recomendação da Ruth, a esposa, meio mamão com sementes.

          — Meu bem, não há prisão de ventre que resista. Mas tem que comer todos os dias, hein!

          Assim que terminou, encheu a xícara mais uma vez e foi até a sacada do apartamento no Sudoeste. Tomou um gole e, quando já estava novamente com o café próximo aos lábios, eis que parece ter escutado alguém chamá-lo. Quer dizer, não exatamente Arnaldo ou Arnaldo Carvalho, como raramente o faziam. Mas Wendell. 

          Arnaldo tomou um susto e quase queimou os lábios com o café. Olhou desconfiado para os lados, mas nada. Por um instante, pensou que aquilo não passava de coisa da sua cabeça, até que, uma vez mais, porém de modo contundente, ouviu a mesma voz.

          — Oh, Wendell! Tá surdo?

          — Quem está falando? Onde você está?

          — Ah, para com isso! Você sabe muito bem quem eu sou.

          — Sei?

          — Sim!

          — Desculpe, mas não me recordo. De onde nos conhecemos?

          — Sou o seu alter ego.

          — Alter ego?

          — É.

          — E por que você me chamou de Wendell?

          — Gosto de Wendell. É sonoro. E, convenhamos, muito melhor do que...

          — Do que o quê?

          — Ué, você sabe.

          — Sei?

          — Arnaldo ou...

          — Ou o quê?

          — Raul.

          — Raul?

          — É. Nada a ver. Além do mais, Raul popular é só o Seixas. 

          — Hum!

          — Abreu tá bom?

          — Abreu? 

           — É.

            — É o quê?

            — Wendell Abreu. É o nome que vai te fazer popular.

          — Abreu? Peraí! Abreu é aquele Loco que acabou com a gente em 2010. Não pode ser Coimbra?

            — Não. Abreu é melhor.

            — Mas eu sou Mengão. Coimbra é do Zico.

            — Abreu e não se fala mais nisso.

            — Tá! Mas qual é o plano?

            — O lance é o seguinte. Tu tem que fazer o dejejum exatamente como você fez hoje. Café preto, duas torradas, meio mamão com semente e, em seguida, pegue mais uma xícara de café e venha para cá. Se você fizer isso do jeito que tô te falando, todos os dias você vai receber uma, digamos, inspiração. Daí, é só usar o moleque doido de Del Castilho, que está guardado bem aí no fundo desse coração carregado de sentimentos e muito samba no pé. 

             Arnaldo Carvalho, quer dizer, Wendell Abreu, seguiu as orientações de seu alter ego e, já no dia seguinte, escreveu um texto que quase fez a esposa morrer de tanto rir. Mesmo assim, ainda na dúvida, pensou por quase uma hora se iria encaminhá-lo ao editor do jornal. Ruth até tentou convencer o marido, mas quem deu o empurrão final foi o alter ego.

            — Que você está esperando, Wendell?

            — Tem certeza?

            — Num tô te falando?

            — Mas tem que ser Wendell Abreu?

            — Não foi o que combinamos? 

            Arnaldo, finalmente, mandou o texto para o editor. Disse que era um grande amigo de Del Castilho, cujo texto era uma pintura. 

            — E o cara se chama mesmo Wendell Abreu?

            — Por incrível que pareça.

            — Bem, já que você está recomendando, vai ser manchete. 

            Choveram mensagens e telefonemas como a redação do jornal nunca havia visto. Todos queriam mais textos do tal Wendell Abreu, que se tornou coqueluche dos leitores da capital. E o sucesso foi tamanho, que começou a provocar certo ciúme no Arnaldo Carvalho, que precisou fazer terapia até assimilar aquela loucura. 

              Tirando a Ruth, Arnaldo e o seu alter ego, ninguém desconfia que Wendell Abreu é, vá lá, mero devaneio de um jornalista frustrado. Seja como for, agora ele é muito mais popular do que jamais imaginou. E ainda pode se dar ao luxo de passear tranquilamente na rua sem que ninguém venha lhe pedir para tirar uma selfie

  • Nota de esclarecimento: O conto "Arnaldo Carvalho ou Wendell Abreu?" foi publicado no Notibras no dia 5/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/arnaldo-carvalho-ou-wendell-abreu/