quarta-feira, 31 de julho de 2024

Laura e o perfume revelador

    

           Afrontosa. Afrontosa! Pois foi disso que a calhorda da Mirtes me chamou. Afrontosa é ela, que não tem vergonha de pedir emprestado e não devolver depois. Não que tenha sido comigo, pois não sou mulher de emprestar as coisas para quem nem me dá bom-dia.  

            De tão abespinhada que fiquei, quero cuspir a farofa que está engasgada aqui na goela. Cuspo e quero ver se aquela pulha tem coragem de desdizer o que vou dizer. E se digo, é verdade! Ou coisa perto dos acontecidos, já que não vou ficar buscando defeito na história que me contaram. Se quiser acreditar, acredite ou, do contrário, vá procurar o que fazer e não me venha atazanar as ideias. A chaleira está fervendo, e não vou perder tempo com descrente. 

            O causo é o seguinte. Ah, digo mais! Quem me contou foi a própria Laura, mais uma das inúmeras vítimas da Mirtes. E já adianto que a Laura não é mais afeita a mentiras do que qualquer um de nós. Que tenha alguns exageros, isso é do jogo. Ou você vai querer dar uma de moralista e falar mal daquele gol de mão a favor do seu time? Ah, me poupe!

            Um perfume. Tudo foi por causa de um maldito perfume que a Laura comprou no camelô. Perfume importado, por assim dizer. Que fosse falsificado, não importa, já que a história não vai ficar menos onerosa para a bandida da Mirtes. A fedentina é certa.

            A Laura, que estava sossegada em casa após mais um dia de labuta, ouviu a campainha tocar insistentemente. Mesmo cansada, foi ver quem era. E quem era? A salafrária Mirtes, que veio pedir um vestido emprestado. 

            — Veja lá o que você vai aprontar com esse meu vestido, hein, mulher!

            — Pode ficar tranquila, amiga! Te devolvo lavado, passado e engomado.

            Convencida pela lábia da Mirtes, a Laura, inocente como ela só, ainda caiu na conversa de deixar que a outra levasse o frasco do tal perfume mais caro que petisco em bar de bacana. 

            Quase duas semanas depois, nada da Mirtes devolver o vestido nem o perfume. A maldita sumiu do mapa, como se estivesse se escondendo das obrigações. Todavia, como não dá para tatu ficar entocado durante muito tempo, eis que algo inesperado aconteceu. 

            A Mirtes não apareceu, mas o Orlando, o namorado da Laura, que também andava sumido, deu as caras. O gajo, que teria dito que iria fazer uma viagem de última hora, tudo a mando do patrão, finalmente retornou para os braços da amada. Entretanto, a Laura, cuja tolice foi logo deixada de lado, percebeu algo que a fez ligar os pontos.

         — Orlando, seu descarado! Nem me venha com desculpas, pois conheço muito bem esse perfume.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Laura e o perfume revelador" foi publicado por Notibras no dia 31/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/laura-descobre-traicao-ao-sentir-perfume-revelador/

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Honório, a máquina e o defunto

            Não se sabe ao certo se aconteceu em 1946 ou 1948, mas foi após o final daquela terrível guerra que assombrou o mundo. Seja como for, o fato se deu ao redor da região que hoje é conhecida como capital do Brasil. 

          Naquele tempo, havia um morador chamado Honório da Silveira, que era muito criticado pelos conhecidos por não colocar os filhos no serviço, deixando-os curtir a infância e, pasmem, até a adolescência. Pois é, ninguém entendia por que o homem queria que os herdeiros ficassem naquela mordomia de só estudar. 

          Honório, sujeito de posses, era um dos poucos que possuía automóvel por aquelas bandas. Aliás, ninguém falava automóvel, mas máquina. E foi justamente por conta disso que, numa noite fria de junho ou julho, alguém foi pedir ajuda ao ricaço.

          — Por favor, o senhor é o único que pode me ajudar.

          — Diga, meu rapaz. No que posso ajudá-lo?

          — O meu tio morreu lá no sítio, e não tem ninguém pra ir buscá-lo. Lembrei que o senhor tem máquina de carroceria e poderia buscar meu tio pra gente velar e enterrar aqui no cemitério da cidade. 

          Honório, que corria de gente morta quem nem o Diabo foge da cruz, buscou socorro na esposa, Albertina. A mulher torceu os lábios, ergueu e abaixou os ombros sutilmente. Não tinha jeito, ele precisava ajudar. E foi o que fez.

          Sem alternativa, Honório colocou uma capa de frio, assentou o chapéu na cabeça e, já quase saindo de casa, ouviu a voz do filho mais velho, o Vagner, perguntando se poderia ir junto. 

          — Coloque o casaco, pois o frio hoje está de lascar.

          E lá foram os três buscar o defunto, que estava na fazenda Urutu, que era bem longe. Mal chegaram, tudo estava tão escuro, que nem dava para enxergar um palmo à frente do nariz. Isso sem falar que chovia a cântaros, o que dificultava ainda mais a tarefa que precisava ser cumprida.

         — Senhor Honório, se preferir, poderemos passar a noite aqui e prosseguiremos viagem amanhã bem cedo.

          O dono da máquina, escondendo o medo de passar a noite com o cadáver, disse que era melhor resolver aquela situação de uma vez por todas. Eles, então, ergueram o morto e o colocaram na carroceria. No canto, a viúva chorava humildemente para não atrapalhar o trabalho dos homens.

          Sem demora, Honório ligou o automóvel, enquanto as outras pessoas, incluindo a esposa do falecido, se acomodavam no banco do veículo. Partiram e, pelas contas do motorista, chegariam antes do amanhecer. Só que ele não esperava que um imprevisto iria acontecer e, como é sabido hoje em dia, aconteceu naqueles idos.

          Mais ou menos no meio do caminho, a camionete enfrentou um declive pouco antes de uma ponte de madeira. Honório, precavido, tratou de controlar a velocidade com o pé no freio. O carro conseguiu passar pela ponte, quando, então, Vagner alertou o pai sobre o aclive bem em frente.

          — Papai, o senhor vai ter que dar mais carga no motor, porque, com essa lama, a máquina não vai subir.

          — Sim, meu filho, já tinha pensado nisso.

          Honório deu tanta carga no motor, que o automóvel subiu feito foguete. O problema foi que, com o solavanco, o defunto escorregou pela caçamba e forçou a portinhola, rompendo-a. E lá foi o marido da viúva, ribanceira abaixo, se estabacar dentro do riacho.

          A mulher, aos prantos, viu os três homens desesperados descerem do veículo. Eles entraram no riacho, cuja água estava gelada. Mas frio era o menor dos problemas naquela situação. E, com a força que ninguém sabia possuir, conseguiram colocar o finado de volta à carroceria. Trataram logo de sair dali, antes que o improvável voltasse a acontecer.

          Chegaram à cidade pouco antes do almoço. Velaram o corpo por algumas horas, até que todos os parentes e amigos pudessem se despedir do falecido. Ao pé do caixão, a viúva, com as mãos sobre a perna do marido, dizia em voz baixinha:

          — Coitadinho do meu José. Além de morto, ainda quebrou a perna na queda.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Honório, a máquina e o defunto" foi publicado por Notibras no dia 29/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/viuva-chora-dor-do-marido-com-perna-quebrada-depois-de-morto/

sábado, 27 de julho de 2024

Os rabiscos da Ana Lúcia

    

        Ana Lúcia adorava fazer desenhos nos cantos dos cadernos. Sua mãe, no entanto, sempre que pegava a menina entretida com aquilo, não perdia a oportunidade de repreendê-la.

          — Ana Lúcia, pare de rabiscar!

          Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris. 

          O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte. 

          Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente. Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras. 

          Aconteceu no final de setembro, quando a primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama, onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.

          Juntaram os panos e, dois anos após, veio a pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe forças.

          As décadas seguintes voaram sem que Ana Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.

          Que nem menina, a velha abriu o presente e se deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente. 

          É verdade que, de vez em quando, imaginava sua saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos estão ansiosos para tal evento. Pois é, parece que os sonhos não têm data de validade.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Os rabiscos da Ana Lúcia" foi publicado por Notibras no dia 27/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/rabiscos-da-infancia-vem-sem-prazo-de-validade/

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Gari, o estelionatário das torcidas organizadas

    

            Garibaldo, o Gari, como os mais próximos o chamavam, tinha a mania de se passar por torcedor de qualquer time, por mais improvável que fosse. Tanto é que, não por acaso, ele fingia ser torcedor de qualquer clube, por mais improvável que fosse. Os amigos o acusavam de ser o mais notório estelionatário das torcidas organizadas. Verdadeira fraude ambulante, que transitava com a maior cara de pau sem nem mesmo piscar diante de possíveis confrontos.

          — Gari, como é que você é torcedor do Fluminense, se na semana passada você estava cantando o hino do         Vasco?

          — Eu? Tá maluco?

          — Não lembra? A gente estava com o Lúcio no bar do Onofre.

          — Ah, tá! Fiz aquilo pra ele ver que o hino do Vasco é fraquinho perto do meu Fluzão. Sou tricolor de coração...

          O gajo, que de bobo não tinha nem a cara, dependendo da situação, poderia se tornar até torcedor do praticamente falecido América. Foi assim com o seu Calixto, provavelmente um dos últimos apaixonados pelo time da Zona Norte do Rio de Janeiro. Isso aconteceu porque o Garibaldo, sem grana para pagar o aluguel, foi pedir um prazo para quitação para o dono do imóvel.

          — Pois é, seu Calixto, se eu te contar, o senhor não vai acreditar.

          — O que foi, Gari? 

          — Bem, não sei se o senhor soube, mas perdi o meu avô na semana passada.

          — Meus sentimentos.

          — Obrigado. Só que eu tive que arcar com os custos da funerária.

          — Hum. E daí?

          — E daí é que fiquei meio apertado para pagar o aluguel pro senhor.

          — Gari, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Se você não tem o dinheiro, vou ser obrigado a pedir para que você desocupe a quitinete.

          — O senhor está certo. Vou tentar vender a camisa do time do vovô. Aliás, do meu avô e meu também.

          Nisso, Garibaldo retirou o casaco e, então, Calixto, olhos marejados, percebeu que o inquilino está trajando a camisa do América. Emocionado, o velho encarou o rapaz e disse:

          — Gari, meu filho, vou dar um prazo para você pagar. Vê se consegue me pagar o aluguel até o mês que vem. Pode ser?

          Garibaldo, com o sorriso mais cínico do mundo, abraçou o Calixto. Em seguida, entrou no apartamento se coçando todo, retirou a camisa do América e a depositou bem no fundo da gaveta. Não demorou, começou a resmungar.

          — Maldita alergia à naftalina!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gari, o estelionatário das torcidas organizadas" foi publicado por Notibras no dia 26/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/gari-estelionatario-de-torcidas-escapa-de-despejo/

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Laura, a namoradeira

    

          Laura, namoradeira desde sempre, não perdia a oportunidade de compartilhar os lábios com algum bonitão. Nada como um beijo casual no escurinho do cinema ou mesmo no banquinho da praça, ainda mais quando o único poste que iluminava o local estava quebrado. Momentos acumulados ao longo de décadas, até que, sem avisar, a velhice chegou.

          A mulher, agora perto dos 80, estava livre para novos voos. Isso depois de três casamentos, dois desfeitos por incompatibilidades conjugais, fora outro que a divina providência teria se adiantado à iminente separação. Completamente nua diante do amplo espelho do quarto, Laura parecia gostar do reflexo. Nada mal para aquele chassi 1945.

          A velha, além de homens, também gostava de beber uma cervejinha com as amigas, todas reguladas em idade. E lá estavam aquelas companheiras de copo sentadas à mesma mesa do bar de sempre. Conversavam amenidades entre uma e outra piada da Lúcia, especialista no assunto. Tanto é que os outros clientes levantavam as orelhas para escutá-la, o que, no final, gerava gargalhadas por todo o ambiente.

          Os fregueses, não raro, saudavam a piadista, que se levantava e se curvava diante da plateia. E foi num desses momentos que surgiu a Alice, neta da Francisca, que estava justamente sentada ao lado da Laura. A moça, no viço dos seus 19 anos, se aproximou da avó e lhe deu um beijo na face. Em seguida, cumprimentou as senhoras à mesa.

          Quando Alice já estava se despedindo, eis que entrou no bar um homem de seus quase 90 anos, camisa azul, bermuda vermelha e tênis preto sem meias. Ele passou pela mesa das mulheres, o que gerou um burburinho. Elogios daqui, elogios dali, até que Alice, surpresa com a reação das velhas, não resistiu e deu a sua opinião, no que foi prontamente reprimida pela Laura.

          — Gente, o que é isso? Ele é um velho!

          — Minha filha, maracujá de gaveta também dá suco! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Laura, a namoradeira" foi publicado por Notibras no dia 25/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/laura-lembra-que-maracuja-de-gaveta-tambem-da-suco/

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Maurício, o pintor de quadros

    

                Maurício, para quem o conhecia, era sinônimo de problema. Bastava ter dinheiro na mão para cair na bebedeira. Outro contratempo é que o homem, além de não conseguir largar a bebida, esquecia de voltar para casa. Por isso, não raro, amigos e familiares precisavam recolhê-lo na rua até que a situação ficou insustentável e, então, ele foi internado em uma clínica de reabilitação.

          Reabilitado, Maurício retornou ao seu ofício, que era pintar araras, papagaios e, dependendo do momento, atrevia-se a criar duas ou três patativas no meio da mata. Coisas de artistas, a mãe, dona Judite, gostava de falar. Seja como for, os quadros, expostos na calçada em frente à residência da família, raramente eram vendidos, apesar dos olhares curiosos dos transeuntes, que passavam e seguiam seus caminhos diversos.

          Gilmar, morador novo do bairro, gostava de caminhar até o trabalho. E, numa dessas idas e vindas, acabou se deparando com o Maurício e aquele amontoado de quadros. Apesar da pressa, Gilmar se deteve por alguns instantes, o suficiente para ficar encantado com a pintura de duas araras-vermelhas. Olha daqui, olha dali, combinou o preço com o artista.

          — Novecentos reais em três vezes. Pode ser?

          — Sim. Aqui estão os primeiros trezentos, Maurício. 

          Gilmar levou o quadro e o pendurou na sala. Que belezura! Cristiane, a esposa, amou, tecendo elogios ao pintor. O casal, não raro, se detinha em frente à obra de arte e conversavam sobre o estilo do artista. Impressionista, mas com toques de surrealismo, pois repararam que o Sol, ao fundo, se derretia em suor. 

          Mês seguinte, lá foi o Gilmar atrás do Maurício para pagar a segunda parcela. Não o encontrou e, no dia seguinte, passou pelo mesmo local. Nada do homem. Onde ele teria se metido? Gilmar, durante os próximos seis meses, fez o mesmo caminho até que, numa manhã fria de junho, encontrou o artista na calçada tentando vender mais alguns quadros. 

          — Maurício, onde você se meteu? Estou querendo te pagar há um tempão.

          — Ah, estive internado.

          — Mas você está bem?

          — Sim. É que estava numa clínica de reabilitação.

          Gilmar e Maurício se despediram, com a promessa de se reencontrarem no mês seguinte para que a dívida fosse quitada. No entanto, quando chegou o dia de pagar os últimos trezentos reais, nada do Maurício. Gilmar, que era bom pagador, passou por ali durante mais quase seis meses, quando, finalmente, reencontrou o pintor.

          — Maurício, você estava sumido. Vim te pagar a última parcela do quadro.

          — Pois é, estava internado novamente. 

          — Na clínica de reabilitação?

          — Sim.

          Os homens se despediram. Gilmar, que gostava de buscar novos caminhos, nunca mais passou por aquela calçada, até que, depois de quase seis meses, sentiu vontade de comprar outro quadro para fazer companhia às duas araras. Mal chegou, encontrou o Maurício arrumando os quadros na calçada. 

          — Oi, Maurício! Há quanto tempo!

          O pintor, que havia saído novamente da clínica de reabilitação, olhou para Gilmar. Ele coçou a cabeça e, curioso, perguntou:

          — De onde você me conhece?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Maurício, o pintor de quadros" foi publicado por Notibras no dia 24/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/cachaca-em-excesso-provoca-amnesia-em-artista/

terça-feira, 23 de julho de 2024

Fabiano, o festeiro

   

            Se dependesse do Fabiano, todo dia era dia de festa. O homem até trabalhava, mas por pura necessidade, pois não havia nascido em família endinheirada. No entanto, mal saía do serviço, ia para casa, onde preparava um quitute dos seus tempos de menino.

          Salsicha, queijo e azeitona, às vezes até incrementava com tomate e pimentão, mas tudo cortado e espetado em um palito: sacanagem. Dependendo do ânimo, abria uma lata de cerveja ou de refrigerante, colocava um LP da Beth Carvalho e ensaiava alguns passos. De vez em quando, parava diante da televisão desligada, onde conversa com a própria imagem refletida na tela. 

          Aconteceu numa segunda-feira, dessas raríssimas que ninguém quer ir para o trabalho. Os colegas estranharam a ausência do Fabiano, que, apesar de pouco afeito ao serviço, não era de atrasar, muito menos faltar. Eles imaginaram que o atraso era por conta da greve dos ônibus. Que nada! Não havia paralisação naqueles dias. Além disso, Fabiano morava a não mais que um quilômetro dali. 

          O chefe, que chegava mais tarde, assim que pisou na repartição, perguntou onde estava o Fabiano. Júlio, colega quase amigo do sumido, disse que ele teria saído para comprar remédio para enxaqueca. Dor de cabeça foi o que o mentiroso precisou lidar, pois nada do Fabiano aparecer.

          Júlio teve que inventar uma desculpa e foi até o apartamento do amigo. Chegou e tocou o interfone. Nada! Insistiu. Nada! Preocupado, tocou no apartamento ao lado. Uma voz envelhecida atendeu. Era a dona Lourdes, vizinha de longa data do Fabiano.

          Depois de trocarem algumas palavras, a velha abriu a portaria. Júlio, de tão angustiado, preferiu enfrentar as escadas em vez de aguardar o elevador. Esbaforido, chegou ao sexto andar. Tocou insistentemente a campainha. Nada! Bateu à porta a ponto de esmurrá-la. Nada! Quase desistindo, gritou pelo amigo, quando, finalmente, a porta se abriu lentamente. 

          — Júlio, o que você faz por aqui?

          — Graças a Deus, Fabiano! Pensei que você estivesse morto, cara.

          — Morto? 

          — É, meu irmão. Você não apareceu no trabalho hoje, e tá todo mundo preocupado.

          — Não morri, mas não vou mais trabalhar. Nunca mais.

          — Ficou maluco?

          — Não. 

          Fabiano convidou o amigo para entrar e, em seguida, apontou para a tela do computador, onde se via uma das páginas do Diário Oficial. Júlio, finalmente, entendeu o motivo pelo qual o colega não havia comparecido ao trabalho naquele dia. 

          — Pois é, Júlio, finalmente chegou a minha aposentadoria.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Fabiano, o festeiro" foi publicado por Notibras no dia 23/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/aposentadoria-silenciosa-deixa-reparticao-em-panico/

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Tertuliano e as bergamotas

        Tertuliano tinha compulsão por tangerina, que conhecia por bergamota, mas preferia chamar de berga. De tantas que devorava, a mãe profetizou: "Daqui a pouco, vai nascer um pé de bergamota dentro da sua barriga!" Nascer como, se o guri tomava cuidado para não engolir as sementes? 

          O menino se fazia de desentendido e, sempre que era época da fruta, tratava logo de correr para o quintal e se encostar no tronco da tangerineira. Esquecia-se das brincadeiras, esquecia-se dos deveres de casa, esquecia-se de almoçar, esquecia-se da vida, não se lembrava de nada. Empanturrava-se de tanta berga e só entrava quando a mãe, aos berros, o mandava entrar: "Tertuliano, vá tomar banho, pois já tá mais que na hora de guri ir dormir!"

          A contragosto, o moleque fazia aquela careta, mas, para evitar chineladas, que certamente viriam, tratava logo de se levantar e apressar o passo. Vez ou outra, ainda estava com um gomo na boca. Pois foi justamente numa dessas ocasiões que aconteceu aquilo que o guloso mais temia. Sim, isso mesmo! O menino engoliu uma semente logo após a mãe lhe aplicar um beliscão na orelha, tudo por conta daquela gulodice. 

          Pobre Tertuliano, com as duas mãozinhas encardidas em volta do pescoço, ainda tentou impedir que aquela semente descesse para o estômago. Em vão, pois a danadinha desceu toda faceira. Pra quê? O garoto arregalou os olhos e, choroso, foi tomar banho antes de se deitar. 

          Lá estava o guri no seu quarto. Sozinho no escuro, não conseguia pregar os olhos e, quando tentava fazê-lo, logo surgia a profecia da mãe: "Daqui a pouco, vai nascer um pé de bergamota dentro da sua barriga!" E agora? Como é que o guri iria fazer para se livrar daquele problema? De tanto pensar, acabou adormecendo sem se dar conta.

          Tertuliano se viu despertado pela mãe na manhã seguinte. A mulher, com cara de mãe enraivecida, tratou logo de puxar a cria pela orelha. Ela tomou um baita susto, pois percebeu que dali saíam folhas presas a um galho. Olhou a outra e, então, constatou que também apresentava um outro galho repleto de folhas. Mãe e filho se encararam.

          — Tertuliano, por acaso você engoliu alguma semente?

          — Foi só umazinha.

          — Mas eu te falei pra não engolir!

          — Foi sem querer, mamãe.

          Diante daquela situação, a mulher não teve escolha. Foi logo chamar o marido e lhe contou o ocorrido. Não havia o que fazer, a não ser tomar as devidas providências. 

          O homem pegou a enxada e cavou um buracão, o suficiente para que o filho ficasse em pé, somente com a cabeça para fora. Cobriu-o de terra. A mãe, então, pegou um balde cheio d'água e despejou sobre a cabeça do filho. Tertuliano ainda reclamou que a água estava fria, mas acabou aceitando a própria sina de bom grado, pois sentiu que seus braços e pernas já estavam se transformando em raízes. 

          Como a estação de bergamota ainda vigorava, logo nasceram vários frutos, que caíram próximos à boca de Tertuliano. Ele, então, gritava para a mãe, que corria para bem perto do filho. A mulher descascava uma a uma aquelas bergas e, cuidadosamente, colocava os gomos nos lábios do menino. Entretanto, precavida que era, alertava o filho: "Tertuliano, por favor, não vá engolir mais nenhuma semente!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Tertuliano e as bergamotas" foi publicado por Notibras no dia 22/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/fantasia-vira-realidade-no-gesto-de-engolir-semente/



domingo, 21 de julho de 2024

Hernández e sua notória falta de paciência

      

               Apesar do pouco contato que tive com o Hernández, não mais do que alguns meses trabalhando na mesma seção em certa repartição pública, ainda hoje, passados quase 20 anos da minha aposentadoria, guardo na memória certos momentos, quando ele nos divertia com sua completa falta de humor. Verdadeiro rabugento, mas que, no seu peculiar modo de enxergar o mundo, ainda assim, conseguia enternecer os que tiveram o privilégio de conhecê-lo.

          Do alto daqueles quase dois metros, o meu colega não suportava comentários esdrúxulos a respeito dos seus pensamentos, ainda mais se o incauto fosse torcedor de outro time que não o Flamengo. E nem adiantava questioná-lo sobre os notórios assaltos que alguns árbitros promoviam a favor do seu time de coração, pois ele sempre possuía uma frase de efeito: "Olha aqui, seu ser supostamente pensante, melhor um apito amigo do que um que seja inimigo!"

          Eu, que nunca fui torcedor de qualquer agremiação, me fiz flamenguista para agradar os impulsos futebolísticos do Hernández. Por isso, tratei logo de aprender alguns fatos sobre a gloriosa... Quer dizer, já estava me confundindo com aquele outro time. Pois bem, estudei sobre passagens vitoriosas do Mengão para conseguir convencê-lo. Não sei se consegui, mas arranquei muitas risadas do Gilmar e do Flávio, que completavam a equipe.   

          Certa vez, durante aquelas tardes de verão que nem o ar condicionado consegue apaziguar a situação, o Hernández parecia ainda mais irritado. Qualquer coisa era motivo para resmungos, que eram jogados no ventilador e, por isso, não havia viva alma que conseguisse escapar dos respingos de rabugice do meu amigo. E foi o que aconteceu durante uma quarta-feira, quando iria acontecer mais um clássico entre o time do Hernández e o Atlético Mineiro.

          A Marina, mineira de Belo Horizonte e torcedora fanática do Galo, apareceu na nossa sala, onde o clima já não estava dos melhores. Ela até tentou se manter discreta, mas foi provocada pelo Gilmar, que sempre gostou de ver o circo pegar fogo.

          — E aí, Marina, parece que hoje vai ter sopa de galo no Maracanã.

          — Ih, Gilmar, isso não vai acontecer de novo, pois os flamenguistas não podem mais contar com o maior ídolo da história deles. 

          — O Zico?

          — Não, o José Roberto Wright.

          Nisso, eis que eu, inocente, puro e besta, ainda fui perguntar quem era esse tal José Roberto, quando o Hernández, do alto da sua notória falta de paciência, balançou a cabeça e mandou essa:

        — Sou uma ilha cercada de mentecaptos!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Hernández e sua notória falta de paciência" foi publicado por Notibras no dia 21/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/hernandez-o-flamenguista-sem-nenhuma-paciencia/

sábado, 20 de julho de 2024

O casarão e os causos do tio Isidório

    

              Minha infância foi maravilhosa. Foi mesmo! Durante os tempos de aula, era na cidade. Mas bastava chegar as férias, corria para a liberdade da roça, lá na fazenda dos meus dos pais da minha mãe. Vovó Jurema e vovô Horácio. Eita, que saudade!

          O casarão era enorme, cheio de quartos, tanto espaço, que eu, meus irmãos e primos nos perdíamos. Ao redor tinha de tudo: curral, galinheiro, chiqueiro, um terreno sem fim, o rio lá embaixo. Minha avó, apesar de amorosa, nos tratava com certo rigor. 

          — Primeiro, as obrigações; depois, a devoção. 

          E ai de quem risse durante o terço. Era aquela lapada de vara de marmelo no traseiro. Meu primo Antero, esperto que nem ele só, colocava capim dentro da calça para amortecer as pancadas. 

          A despeito desse modo de educar, vovó Jurema sabia que precisávamos correr livres para gastar energia de criança. No entanto, ela também era especialista na hora de atrair todos os netos quando chegava a hora da fome. Bastava abrir a janela da cozinha para que o cheiro do almoço chegasse a todos nós. Era uma correria só.

— Vão lavar as mãos, que não quero menino lambão na minha mesa.

          Tio Isidório, que morava a uns quinhentos metros da casa dos meus avós, era contador de causos. Por isso, logo após o jantar, que sempre acontecia às 17h, quando a luz do dia ainda fazia sala, caminhávamos até a casa do nosso parente. Saíamos logo após comermos e íamos em fila indiana por uma trilha, com o capim alto dos lados. 

          Quando chegávamos, meu tio dava um pedaço de rapadura para cada um de nós. Em seguida, desandava a contar os causos. Não sei se era de propósito, mas quase sempre eram histórias de assombração, que ele jurava ter acontecido por aquelas bandas. Lembro bem que todos nos entreolhavámos assustados, mas não perdíamos nenhuma palavra sequer. Ansiávamos pelo final, que sempre era apavorante

           Depois de tio Isidório terminar, precisávamos retornar para o casarão dos meus avós. O problema é que a escuridão já havia tomado o lugar. De tão densa, que nem lua cheia era suficiente para iluminar o caminho de volta. Por conta disso, ninguém queria ser o primeiro nem o último da fila. Tirávamos a sorte e, depois, corríamos tanto, que tenho a impressão de que nem tocávamos no chão, parece que levitávamos. Vovó, assim que entrávamos correndo na casa, ralhava. 

            — Que é isso? Tão malucos? Até parece que viram alma penada.

          Mergulhávamos na cama, cobríamos a cabeça e os pés. Ficávamos conversando por um tempo, até que um a um adormecia. Ninguém queria ser o último a dormir, como se os fantasmas soubessem quem ainda estava acordado.

         No dia seguinte, com a claridade de volta, parecia que todos havíamos esquecido do medo que sentimos na noite anterior. Os dias corriam ligeiros que nem cavalo desembestado, até que íamos para a casa do tio Isidório. Quanto ao medo, só lembrávamos quando víamos o breu lá fora.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O casarão e os causos do tio Isidório" foi publicado por Notibras no dia 20/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/velho-casarao-inspira-os-causos-do-tio-isidorio/

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Sonho quase realizado

    

       Quando menino, pensava em virar caminhoneiro que nem o Costa, amigo da família. Ele costumava contar as coisas que havia vivido na estrada, da calmaria das noites escuras e dos primeiros raios de luz nas frias manhãs. Sentado no chão da varanda, meus olhos se fixavam naquele homem de voz rouca e barriga maior do que a do papai.

          No dia seguinte, enquanto mamãe preparava o café da manhã, eu lhe contava meus planos de seguir os passos do Costa. Ela me olhava de lado, cuspia um palavrão e procurava me desencorajar.

          — Deixa de bobice, Alfredo! E lá criei filho pra cair no mundo. Pois você vai tratar de estudar e trabalhar num emprego normal que nem seu pai.

          É verdade que estudei, mas não me tornei escriturário como meu pai, que praticamente só teve um emprego em toda a vida, num cartório perto de casa. De tanto carimbo que bateu, acabou desenvolvendo uma tendinite que o acompanhou até o último suspiro. Ironia ou não, mamãe ainda hoje utiliza um dos carimbos do papai como peso de papel na estante da sala. 

          Engenheiro que me tornei, viajo por toda a região. Quando posso, prefiro ir de carro. Creio que, de certo modo, consegui realizar meu sonho de infância. A estrada me fascina e me permite ter conversas com o meu eu interior. Além do mais, consigo ver lugares impossíveis de serem vistos lá de cima, quando vou de avião.

          De vez em quando, coloco uma música, mas o silêncio me permite apreciar melhor a paisagem. Gosto de ver os cavalos soltos no pasto. Vejo mais vacas e bois. Será que eles sabem que, mais cedo ou mais tarde, acabarão num prato? 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sonho quase realizado" foi publicado por Notibras no dia 19/7/2024.
  • https://www.notibras.com/site/do-alto-de-baixo-vendo-o-mundo-no-futuro-do-prato/