Rubens, no banco próximo à janela do metrô,
se perdia em pensamentos, como se desejando que o tempo parasse. Melhor, que
voltasse a não mais de dois, três anos, quando ainda era possível sentir que
Amália o amava. Não que isso fosse necessariamente verdade, mesmo porque, como
o homem descobrira muito antes, a esposa caminhava de mãos dadas com outro
desde pouco antes dos dois firmarem compromisso perante o padre.
Vinte e cinco anos de mentiras? Não. Mesmo os
traídos não têm o direito de atirar pedras sobre momentos tão aprazíveis como
jantares à luz de vela, beijos fortuitos no escurinho do cinema, instantes
ardentes mesmo após a chegada dos filhos. Rubens não seria leviano a ponto de
não valorizar tudo aquilo só por causa de um caso.
Quando descobriu, não fez escândalo, o que
poderia até ser aceitável entre os afeitos a rompantes. Observou o impacto como
se aquilo já estivesse nas entrelinhas desde sempre e, talvez por isso,
preferiu o silêncio à discórdia, mesmo após desvendar, por mera casualidade, o
quão longínquo era aquele romance. Mero bilhete, encontrado entre as páginas
amareladas de um volume improvável de Gonçalves de Magalhães.
Foi por misto de curiosidade e inocência que Rubens folheou o livro,
pois, até então, desconhecia a afeição da esposa por poesias, ainda mais
românticas. Sabia que Amália se debruçava, por vezes, sobre um ou outro poema
de Drummond, além de jovens talentos contemporâneos como Sarah Munck, Luzia
Couto e Daniel Marchi. Mas Gonçalves de Magalhães? Não. Definitivamente aquele
não seria o autor de primeira escolha da prática Amália.
Leu o bilhete e se espantou mais com a
caligrafia do que com o conteúdo. Apenas sentimentos corriqueiros de corações
apaixonados. Entretanto, a letra lhe era conhecida. Augusto, que desde sempre
frequentava a residência do casal, já que era primo de Amália. Bom sujeito,
sempre agradável e deveras prestativo. Rubens nunca suspeitara que o sujeito se
travestia de Basílio.
Devolveu o bilhete entre as páginas 25 e 26.
Era nítido que estava ali há tempos, já que a tinta se entranhara entre as
estrofes do poeta. Guardou o a obra entre tantas outras que repousavam
serenamente na estante de mogno da sala, tão à vista de todos.
Rubens remoeu a situação por um, dois dias, que se prolongaram por
meses, até que, quando se deu conta, aquilo já havia se tornado mobília
conhecida. Continuou recebendo de bom grado o amante da esposa. Não seria
àquela altura do relacionamento que deixaria o encanto se quebrar. Ademais,
Amália andava tão carinhosa, que seria um desperdício não aproveitar os afagos
da amada. Sem mencionar que os filhos, todos criados, já haviam saído do ninho
em busca dos próprios destinos.
Os almoços e, por vezes, também os jantares, consumavam-se com a
presença do Basílio da esposa. Nessas ocasiões, Rubens aproveitava para
observar as trocas de olhares entre aqueles dois. Discretos, diga-se de
passagem, mas perceptíveis, ainda mais após a descoberta do bilhete revelador.
Seja como for, o marido traído manteve-se fiel ao seu papel de bom anfitrião,
fazendo questão de servir os adúlteros com o vinho trazido por Augusto.
Rubens passou a observar com prazer as risadas da mulher, que se
soltava após duas taças. Augusto, apesar de mais contido, sorria aquele sorriso
típico dos galanteadores. Estariam os dois tocando furtivamente os pés
acobertados pela cumplicidade da toalha de mesa? Era algo que o dono da casa se
perguntava, mesmo que preferisse a dúvida, provavelmente receoso de que a
resposta fosse não.
Era evidente a felicidade de Amália com as visitas do primo.
E o próprio Rubens se percebeu desapontado quando tais eventos falhavam por
conta de imprevistos. E, quando isso acontecia, os dois se sentiam órfãos,
apesar dos motivos diferentes, da presença de Augusto.
— Será
que ele está bem?
— Não há de ser nada, Rubens. Logo, logo o
Augusto almoçará conosco.
Para deixar a esposa e o primo confabularem à
vontade, Rubens aceitava qualquer viagem a trabalho ou, não raro, inventava
visitas a parentes na cidade vizinha nos finais de semana. Quando retornava,
encontrava Amália com aquele jovial sorriso nos lábios.
— Que saudade,
meu amor! Pensei que você tivesse se esquecido de mim.
— E como me
esquecer de você, Amália?
Foi num final de tarde,
quando Rubens retornou para casa, que encontrou Amália caída no tapete da sala.
O livro Suspiros poéticos e saudades ao lado e, na não
esquerda da mulher, o bilhete. Teria ela descoberto que seu segredo havia sido revelado?
O
velório aconteceu no dia seguinte. Era óbvia a consternação de Rubens e
Augusto. Como viveriam sem a presença de Amália? Tentaram, por algumas semanas,
manter a rotina de visitas, até que elas foram rareando e, por fim, se
findaram.
Sentado no banco do metrô, Rubens teve a impressão de que, entre a multidão que descia e subia do vagão, viu Augusto. Sentiu vontade de se levantar e conferir, mas já era tarde, pois a porta se fechou, e o metrô voltou a se movimentar.
- Nota de esclarecimento: O conto "Suspiros e saudades" foi publicado por Notibras no dia 19/9/2025.
- https://www.notibras.com/site/suspiros-e-saudades/
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