sábado, 27 de setembro de 2025

Rafael, o quase ilibado

 

        Rafael, cozinheiro de profissão, apaixonado torcedor do Sampaio Corrêa e moralista desde sempre, começou a ter ideia de se tornar pastor de igreja. E lá foi ele dar os primeiros passos para concretizar seu desejo, que chegou de modo implacável ao despertar naquela manhã cinzenta de agosto.

           Confabulou com seus botões enquanto fazia o dejejum. De tanto pensar, deixou o café esfriar, mas parece que algo acendeu em sua mente. Precisava primeiro se afiliar a alguma igreja. E lá foi ele perambular por aquela bucólica cidade de Sobradinho II, repleta de templos para todos os gostos. 

           Optou por uma igreja de gente vestida pudicamente. Não que fossem santos, mas a santidade que encanta é aquela que aparenta ser, por mais hipócrita que seja. E tentou a sorte. Pastor, sim, senhor! É o que queria ser e, com fé em Deus, é o que se tornaria, nem que precisasse fazer acordo com o próprio Satanás. 

           Não tardou, Rafael foi recebido como fiel dos mais devotos. Se o tema do culto fosse alguma das fraquezas humanas, lá estava o sujeito empolgado gritando mais alto do que todos no recinto a cada fala do pastor. 

          — O cigarro é pecado! Mas o Senhor está ao nosso lado! Aleluia, irmãos!

          — Aleluia!!!

          — O álcool é pecado! Mas o Senhor está ao nosso lado! Aleluia, irmãos!

          — Aleluia!!!

          — O adultério é pecado! Mas o Senhor está ao nosso lado! Aleluia, irmãos!

          — Aleluia!!! Aleluia!!! Aleluia!!!

          Entre tamanha gritaria, não havia devoto que não notasse a presença quase ilibada do Rafael. Tanto é que, não tardou, o próprio pastor o convidou para falar algumas palavras no púlpito. E o homem pareceu gostar da experiência, pois chegou a decorar trechos praticamente esquecidos da Bíblia, o que provocava euforia na plateia. Até o pastor, acostumado com a imersão no livro sagrado, ficava cabreiro. Será que aquela passagem existia mesmo ou, então, era invenção de última hora?

           De tanto falar, eis que Rafael foi convidado a substituir, vez ou outra, o pastor, que andava com pendengas em Goiânia. O que parecia ser coisa para ser resolvida em dias, acabou se prolongando para mais de mês. E foi o tempo para que Rafael se apoderasse do altar e fosse cada vez mais implacável com os pecados. 

          — Irmãos, o cigarro é uma desgraça!!! Irmãos, o álcool é uma profanação!!! Irmãos, o adultério é a mais infame violação do matrimônio!!!

           E os fiéis iam ao delírio com todo aquele fervor. No entanto, se não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe, eis que o titular da igreja retornou para Sobradinho. E, não tardou, tomou o lugar que era seu por direito. 

          Rafael, por sua vez, ficou mal. Ih, e como ficou! Tanto é que retomou antigos hábitos há tempos esquecidos. E, entre um cigarro e outro, foi visto na maior manguaça por uma fiel, que, na verdade, nem era tão fiel assim. Entretanto, até onde se sabia, tal descompostura ainda não havia chegado aos ouvidos do marido. 

          — Pastor Rafael, o senhor por aqui?

          Pego de surpresa, o gajo nem se deu ao trabalho de negar o óbvio. Abriu seu coração despedaçado e, já que estava mais à mostra do que fratura exposta, levantou a garrafa de cachaça e falou para a mulher:

          — E tu por acaso lambe um copinho também?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Rafael, o quase ilibado" foi publicado por Notibras no dia 27/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/rafael-o-quase-ilibado/

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