Como costumava mencionar, chegou matuto na metrópole paulista, onde trabalhou de quase tudo: empacotador de supermercado, ajudante de pedreiro, garçom, lanterninha de cinema, porteiro e, finalmente, chofer de praça. Parecia até que iria se fixar no ofício, ainda mais depois que conseguiu juntar os panos com Elvira e financiar um cafofo ajeitado. Já se imaginava brincando com os futuros paulistanos que, certamente, chegariam para aumentar a família.
Não aconteceu como o imaginado, ainda mais porque, com exceção da primogênita, o resto dos herdeiros nasceram brasilienses. Mas essa é uma outra história, já que Antunes, ao receber um velho amigo, resolveu lhe contar sobre seus primeiros dias em São Paulo.
— Pois você acredita que, assim que desci do pau de arara, meu chinelo escangalhou?
— E não tinha jeito de arrumar?
— Que nada! Já estava pedindo arrego fazia tempo.
— Comprasse outra.
— E não foi o que fiz?
— Problema resolvido, então.
— Não foi tão fácil assim, Matias.
— Não?
— Não.
— E por que não, homem?
— Por causa de desentendido.
— Desentendido por conta de uma sandália?
— E não é que foi mesmo?
— Sério?
— Sério. Mas me deixa contar, se não vamos ficar nessa falação até a Elvira terminar o almoço.
— Pois, então, conte logo, homem de Deus!
— Pois como estava dizendo, com o chinelo escangalhado, precisava de um novo porque não dá pra andar descalço em cidade grande, que perigava até ser preso por vadiagem.
— Tem razão.
— E lá fui eu comprar o meu chinelo. Mal cheguei, o vendedor olhou para os meus pés descalços e já foi dizendo que não tinha esmola. Mas logo falei que era cliente. Tirei até dinheiro do bolso da calça e mostrei para que o sujeito não tivesse qualquer resquício de dúvida sobre a minha pessoa.
— Que vendedor desaforado, Antunes!
— E não é? Mas me deixa terminar a história, pois o pernil já tá cheirando.
—Pois conte logo, meu amigo, que a fome já chegou aqui.
— Hum! Pois lá estava eu, peito estufado, com a mão erguida balançando aquelas notas, quando disse: "Quero um par de japonesas!"
— Tudo resolvido, né?
— Que nada, Matias! Aí que a coisa degringolou de vez.
— Ué, por quê, homem?
— É que o sujeito arregalou aqueles olhos maiores que biloca e respondeu: "E quem não quer, meu amigo? Até eu, que sou casado, tô procurando, mesmo que seja apenas uma pra beijar no escurinho do cinema."
- Nota de esclarecimento: O conto "Chinelo escangalhado" foi publicado por Notibras no dia 10/9/2025.
- https://www.notibras.com/site/chinelo-escangalhado/
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