terça-feira, 30 de setembro de 2025

Ernesta, minha bisavó

 Não sei exatamente quando aconteceu, mas, caso minha falecida bisavó, Ernesta, não estivesse equivocada, parece que o fato se deu entre a virada dos séculos XX e XXI. Ou seria nos idos de 1900? Sei lá! De certo ou quase isso, não importa, até porque não sou historiador e, pelo que minhas vistas repletas de catarata enxergam nitidamente, percebo que a sua paciência já beira o esgotamento. 

          Para ficarmos no meio termo... Peraí, me lembrei! Ou quase isso... Era início de 1910, ano do primeiro campeonato vencido de modo indelével pelo Botafogo. Não exatamente o primeiro, já que, décadas depois, lhe foi conferido o de 1907 também. Se bem que isso é outra história e, então, eis que estávamos em janeiro de 1910, quase certo que era o dia 25.

          Joca, filho de minha tia-bisavó Eleonora, irmã da minha bisavó, era, segundo ouvi, um caso praticamente perdido quando o assunto era a paciência. Nascido na penúltima década do século XVIII, talvez em 1884, ano da abolição da escravatura no Ceará, primeiro estado brasileiro a fazê-lo, o sujeito andava às turras por conta de pendenga com um usurpador de corações femininos, cuja alcunha era Alberto ou Adalberto. 

          Para desfazer qualquer confusão com possível outro desse tipo, vamos chamá-lo simplesmente de Beto. Se bem que, não sei por cargas d'água, tenho mais afinidade por Elias. Que fosse, então, Alfredo.

          O rival de Joca andava, como vou dizer, sempre na beca. Verdadeiro casquilho ou, como gostavam de falar os antigos, um janota. Desses que causam repulsa especialmente a nós, meros mortais, tão sem tempo para preocupações fúteis (ou não) com a aparência. 

          O sobrinho de Ernesta não foi o primeiro a notar a presença de Alfredo, o que não é surpresa, haja vista, quase sempre, ser aquele o último a saber. Entretanto, o falatório corria solto, ainda mais porque os então enamorados não faziam questão alguma de esconder, talvez até na certeza de que a descoberta seria inevitável. E acabou acontecendo da pior forma. Bem, talvez seja um exagero de minha parte, mas nada como provocar certa descarga de adrenalina em quem está lendo. 

          Pois lá estava o Alfredo enlaçado com Henriqueta, uma então jovem de seus 18 ou 23 anos. Como pode perceber, minha memória às vezes falha, o que não compromete de todo a história, ainda mais porque, pelo menos aos meus olhos, tais detalhes são quinquilharias diante do acontecido, que reverberou por toda a sociedade da época e, por pouco, não se tornou uma tragédia. E isso porque o Joca nada mais era do que um dos inúmeros pretendentes da bela e nada recatada moçoila, que desfilava toda aquela exuberância pela praça diante da igreja. Pra você ver! Da igreja!

          A troca de afagos, só permitida entre casais e, mesmo assim, quando no quarto escuro sobre a cama, foi vista à luz do dia por Joca, que ficou enfurecido. Como é que é? Então, lá estava a sua praticamente esposa (e observe você que os dois só haviam trocado olhares breves) com um usurpador de corações? Ah, aquilo não poderia ficar assim! Pois que o gajo tirasse logo aquelas mãos atrevidas dos pulsos desnudos de Henriqueta ou, então, Joca não se responsabilizaria por seus atos. 

          Na verdade, não houve contenda, pelo menos não do tipo que todos cavalheiros de filme de capa e espada logo encenam. Um duelo! Sim, imaginou a cena? Pois ela, parece, só acontece mesmo no cinema. Ou você pensa mesmo que o Joca, justamente ele, que carregava dois sentimentos tão entranhados em seu ser, o da ira e o da covardia, iria tomar alguma atitude mais drástica?

          O sangue ferveu, não tenha dúvida, mas Joca passou direto e, sem rumo, acabou batendo à porta da tia. Não porque quisesse ter prosa com a parenta, entretanto, desnorteado que ficou, se viu ali. Ernesta, surpresa com a visita de última hora, sorriu para o sobrinho e o convidou para um chá, ainda mais porque o rapaz parecia transtornado.

         Impaciente que estava, Joca derramou praticamente todos os verbetes do dicionário sobre a tia. Ela, sabedora das artimanhas do coração, foi firme.

          — Ô, Joca, senta aí e relaxa. 

          — Que relaxa o quê, tia? 

          — Hum! Não tô dizendo, homem? Senta aí, que nem tudo se resolve hoje!

        Não me recordo exatamente o que minha bisavó falou para o sobrinho, mas parece que funcionou. Quer dizer, funcionou em parte. É que os dois jovens engrenaram um namoro, que resultou em matrimônio dois anos após. E, segundo consta nos anais da família, é provável que viveram felizes por quase 50 anos, ainda mais porque o Joca, sabiamente, aprendeu a desviar o olhar quando necessário. E é assim que a vida é. Como Ernesta falava, nem tudo se resolve hoje. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ernesta, minha bisavó" foi publicado por Notibras no dia 30/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/ernesta-minha-bisavo/

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