sábado, 20 de setembro de 2025

Entre vinhos e livros

     Desde muito antes de se perceber velho, Augusto gostava de ler sentado em um dos bancos protegidos pelas copas das amendoeiras que circundavam o parquinho, onde crianças pareciam se divertir. Os gritos da garotada não incomodavam a leitura, mas a tornavam mais interessante. Eram como fagulhas que despertavam sentimentos esquecidos, que se misturavam sem cerimônia aos parágrafos que eram consumidos como iguarias fossem.

    Casado e descasado por vezes, sentia-se viúvo desde que a derradeira ex-esposa sucumbiu à dor do enfrentamento de câncer de mama. E, apesar das inevitáveis rusgas diante do rompimento, reencontraram o caminho da amizade e, assim, trocaram confidências até o quase último suspiro da acamada. 

    No exato momento em que virava mais uma página, perguntou-se por que ele e Olívia nunca tiveram uma recaída. Quer dizer, ainda trocaram alguns afagos após o desenlace, mas nada além de duas ou três noites depois de esvaziar uma garrafa de Malbec. Ou teria sido Merlot? Não importa, mesmo porque Augusto nunca fora um especialista no assunto, ao contrário da falecida. 

    Olívia era bonita. Sim, bonita. Não obstante, tal beleza não chegava a ofuscar as mazelas do relacionamento, que eram óbvias até mesmo quando os dois ainda viviam a paixão inicial, momento em que os corpos gritam diante da razão. 

    Por que não tiveram filhos? Essa era uma questão que ainda o intrigava. Era notória a relação de Olívia com os pequenos, que sempre corriam para os seus braços. Quanto a ele, talvez fosse deveras egoísta para se ater aos cuidados de outrem. Gostava dos sobrinhos. Quer dizer, suportava-os por alguns instantes, nada além disso. Talvez Olívia, perceptiva, já havia percebido essa característica indesejável no companheiro e, então, abstivera da ideia da concepção. 

    O casamento, entre idas e vindas, durou além da conta. Gênios tão díspares, definitivamente, não se atraem ou, caso o façam, qualquer coisinha é motivo de separação. E deve ter sido mesmo por bobagem qualquer, dessas que, logo após o desfecho, são levadas pela ventania da insignificância. 

       Entre taças de vinho e afastamentos, nunca deixaram de se falar. E, após quase seis meses do velório de Olívia, o velho continuava a ler os livros recomendados por ela.

     Nada de clássicos, Augusto. Na nossa idade, precisamos olhar para o presente antes que o futuro nos alcance implacavelmente.

        As palavras de Olívia ainda ecoavam nos ouvidos do velho quando um menino, não mais de cinco anos, reclamava aos berros.

        Não, mamãe! Não quero ir!

        Meu filho, vamos, que amanhã a gente vem de novo.

        Não!!!

        Augusto! Pare com isso! A vida não é um morango!

        Enquanto a mulher puxava a criança pelo braço, que esperneava, Augusto sorriu pela coincidência e voltou os olhos para a capa do livro 'A verdade nos seres', de Daniel Marchi.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre vinhos e livros" foi publicado por Notibras no dia 20/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/entre-vinhos-e-livros/

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