quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Lorena e o caminhoneiro

   

Lorena. Sim, era esse o nome daquela jovem. Um tipo quase comum, caso não fosse por aqueles grandes olhos castanhos, que pareciam enxergar muito além, diferente dos seus colegas de lanchonete, cada um mais conformado do que o outro com a vida repleta de precariedades.     

          — Um dia largo isso tudo e vou-me embora.

          — Embora pra onde, Lorena?

          — Num sei, mas que vou, ah, isso vou!

          — Vai nada. Gente igual a gente já nasce neste buraco sem fundo, garota.

          — Pois fale por você, José! Eu é que não vou morrer aqui dentro.

          — Ei, vocês dois aí! Tem cliente pra atender e banheiro pra lavar.

          — Já estamos indo, seu Jorge.

          — Eu é que não vou lavar o banheiro hoje. Vá você, que lavei anteontem.

          — Tá bom, Lorena! Mas fale baixo, que o patrão pode ouvir.

          — Que ouça! Num tenho medo dele.

          Jorge Lanches. Pois era esse o nome da lanchonete mais incrementada do bairro. Um tanto cafona, é verdade, mas cujo cardápio agradava à freguesia afeita a certas extravagâncias. Ademais, o lema do dono era "Quanto mais roxo e abóbora melhor!" Exageros à parte, a verdade é que aquele comércio era um sucesso de audiência. 

          Valter, motorista do caminhão de entregas, passava pelo menos duas vezes na semana no estabelecimento. Por conta dessa rotina, era conhecido de todos, ainda mais porque era falante que nem papagaio. No entanto, sem ser inconveniente, pois sabia a hora de estancar a conversa, o que geralmente acontecia com a última caixa de sorvete entregue.

          — Esse Valter é bonitão, né, Lorena?!

          — Tu acha mesmo, Margarida?

          — E por acaso tu não acha?

          — Hum! Até que é, mas não faz o meu tipo.

          — E qual é o seu tipo, Lorena?

          — Um tipo diferente do Valter.

          — Mas tu tá muito metida, hein?!

          Enquanto a colega falava, Lorena olhou aquele homem, não mais de 35 anos, cabelos negros que nem anu, ombros largos, levemente corcunda de tanto olhar a maioria das pessoas do alto. Sorriu para dentro, enquanto procurou manter os lábios frios para não dar razão à Margarida.

          Dizem que quem desdenha quer comprar. Não sei se era exatamente esse o caso de Lorena, mas Valter pareceu intrigado com aquela situação. Logo ele, o bonitão dos caminhoneiros da firma, enjeitado por aquela quase magricela.

          Quer dizer, Lorena não era tão magra assim. Entretanto, despeito por despeito, Valter não queria ficar para trás. Desse modo, até trocava algumas ofensas inofensivas com a moça.

          — Nem se você fosse a última mulher do mundo, Lorena.

          — Hum! E tu é besta a ponto de não querer tudo isto aqui?

          — Tá muito oferecida, hein?!

          — Não a ponto de fazer caridade pra um bicho feio que nem tu.

          Essa conversa mole durou quase um ano, até que aqueles dois deixaram de provocarem discórdia. Talvez até tivessem se desinteressado um do outro. Coisas de quem não quer dar o braço a torcer. 

     Pois é, mas eis que um dia... Pra você ver como são as coisas, certo dia, mais precisamente uma sexta-feira, início de primavera, o entregador apareceu todo macambúzio.

          — O que foi, homem? Por que tá todo borocoxô desse jeito?

          — Hoje é o meu último dia na firma, Lorena.

          — Foi mandado embora?

          — Fui.

          — Hum! E vai fazer o quê?

          — Ué, pegar o que o patrão me deve e ir embora daqui.

          — Embora?

          — É.

          — E pra onde, homem?

          — Sei lá! Mas aqui que não fico mais.

          — Hum! E vai com alguém?

          — O quê?

          — Vai com alguém, ô, surdo?

          — Ué! Não! Por quê?

          — Hum! Quer companhia?

          — De quem?

          — Minha, né, bocó!

         Foi o tempo de pedir as contas, arrumar a mala e ir embora com o caminhoneiro, agora sem caminhão, mas de Fusca. Nunca mais se teve notícias do inusitado casal. Se bem que dizem que os dois, cansados da vida na capital, foram para o litoral.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lorena e o caminhoneiro" foi publicado por Notibras no dia 24/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/lorena-e-o-caminhoneiro/

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