Não sei exatamente
quando aconteceu, mas, caso minha falecida bisavó, Ernesta, não estivesse
equivocada, parece que o fato se deu entre a virada dos séculos XX e XXI. Ou
seria nos idos de 1900? Sei lá! De certo ou quase isso, não importa, até porque
não sou historiador e, pelo que minhas vistas repletas de catarata enxergam nitidamente,
percebo que a sua paciência já beira o esgotamento.
Para ficarmos no meio
termo... Peraí, me lembrei! Ou quase isso... Era início de 1910, ano do
primeiro campeonato vencido de modo indelével pelo Botafogo. Não exatamente o
primeiro, já que, décadas depois, lhe foi conferido o de 1907 também. Se bem
que isso é outra história e, então, eis que estávamos em janeiro de 1910, quase
certo que era o dia 25.
Joca, filho de minha
tia-bisavó Eleonora, irmã da minha bisavó, era, segundo ouvi, um caso praticamente
perdido quando o assunto era a paciência. Nascido na penúltima década do século
XVIII, talvez em 1884, ano da abolição da escravatura no Ceará, primeiro estado
brasileiro a fazê-lo, o sujeito andava às turras por conta de pendenga com um
usurpador de corações femininos, cuja alcunha era Alberto ou Adalberto.
Para desfazer qualquer confusão com
possível outro desse tipo, vamos chamá-lo simplesmente de Beto. Se bem que, não
sei por cargas d'água, tenho mais afinidade por Elias. Que fosse, então, Alfredo.
O rival de Joca andava, como
vou dizer, sempre na beca. Verdadeiro casquilho ou, como gostavam de falar os
antigos, um janota. Desses que causam repulsa especialmente a nós, meros
mortais, tão sem tempo para preocupações fúteis (ou não) com a aparência.
O sobrinho de Ernesta não
foi o primeiro a notar a presença de Alfredo, o que não é surpresa, haja vista,
quase sempre, ser aquele o último a saber. Entretanto, o falatório corria
solto, ainda mais porque os então enamorados não faziam questão alguma de
esconder, talvez até na certeza de que a descoberta seria inevitável. E acabou
acontecendo da pior forma. Bem, talvez seja um exagero de minha parte, mas nada
como provocar certa descarga de adrenalina em quem está lendo.
Pois lá estava o
Alfredo enlaçado com Henriqueta, uma então jovem de seus 18 ou 23 anos. Como
pode perceber, minha memória às vezes falha, o que não compromete de todo a
história, ainda mais porque, pelo menos aos meus olhos, tais detalhes são
quinquilharias diante do acontecido, que reverberou por toda a sociedade da
época e, por pouco, não se tornou uma tragédia. E isso porque o Joca nada mais
era do que um dos inúmeros pretendentes da bela e nada recatada moçoila, que
desfilava toda aquela exuberância pela praça diante da igreja. Pra você ver! Da
igreja!
A troca de afagos,
só permitida entre casais e, mesmo assim, quando no quarto escuro sobre a cama,
foi vista à luz do dia por Joca, que ficou enfurecido. Como é que é? Então, lá
estava a sua praticamente esposa (e observe você que os dois só haviam trocado
olhares breves) com um usurpador de corações? Ah, aquilo não poderia ficar
assim! Pois que o gajo tirasse logo aquelas mãos atrevidas dos pulsos desnudos
de Henriqueta ou, então, Joca não se responsabilizaria por seus atos.
Na verdade, não houve
contenda, pelo menos não do tipo que todos cavalheiros de filme de capa e
espada logo encenam. Um duelo! Sim, imaginou a cena? Pois ela, parece, só
acontece mesmo no cinema. Ou você pensa mesmo que o Joca, justamente ele, que
carregava dois sentimentos tão entranhados em seu ser, o da ira e o da
covardia, iria tomar alguma atitude mais drástica?
O sangue ferveu, não
tenha dúvida, mas Joca passou direto e, sem rumo, acabou batendo à porta da
tia. Não porque quisesse ter prosa com a parenta, entretanto, desnorteado que
ficou, se viu ali. Ernesta, surpresa com a visita de última hora, sorriu para o
sobrinho e o convidou para um chá, ainda mais porque o rapaz parecia
transtornado.
Impaciente que
estava, Joca derramou praticamente todos os verbetes do dicionário sobre a tia.
Ela, sabedora das artimanhas do coração, foi firme.
— Ô, Joca, senta
aí e relaxa.
— Que relaxa o
quê, tia?
— Hum! Não tô
dizendo, homem? Senta aí, que nem tudo se resolve hoje!
Não me recordo exatamente o que minha bisavó falou para o sobrinho, mas parece que funcionou. Quer dizer, funcionou em parte. É que os dois jovens engrenaram um namoro, que resultou em matrimônio dois anos após. E, segundo consta nos anais da família, é provável que viveram felizes por quase 50 anos, ainda mais porque o Joca, sabiamente, aprendeu a desviar o olhar quando necessário. E é assim que a vida é. Como Ernesta falava, nem tudo se resolve hoje.
- Nota de esclarecimento: O conto "Ernesta, minha bisavó" foi publicado por Notibras no dia 30/9/2025.
- https://www.notibras.com/site/ernesta-minha-bisavo/