sábado, 14 de junho de 2025

O quebra-cabeça da Anita Malfatti

    

Não sei se acontece aí com você, mas, aqui em casa, alguns brinquedos parecem ter vida própria. Do nada, somem, como se fossem dar um passeio. Nem avisam. Nem se preocupam se vamos ou não sentir sua falta. No entanto, para minha surpresa, quase me fazem soltar um palavrão vez ou outra.

          — Então, tu tá aí, seu filho da mãe?

          Geralmente é atrás do sofá, debaixo da almofada do sofá, entranhado naquelas frestas do maldito sofá. Entretanto, pode se esconder, na maior cara de pau, diante dos nossos olhos bem em cima da bancada da cozinha. Mas o que mais me irrita é ter que completar as peças do jogo de damas com uma tampinha de refrigerante. 

          Tenho cá minhas ideias e, com elas, acabei desenvolvendo teoria própria. Nem sei se é válida cientificamente, mas é nela em que acredito. Brinquedos possuem almas sarcásticas e, por isso, gostam de aplicar peças nos seres humanos. Inclusive aquelas tais peças de lego o fazem com frequência e certa maldade. Quem, afinal, nunca pisou em uma maldita peça de lego? E, comigo, é sempre quando estou descalça e, invariavelmente, naquela parte do pé que mais dói, tamanho o desprovimento de carnes na região.

          Outra que aconteceu comigo foi quando inventei de montar um quebra-cabeça de mil peças. Logo eu, que nunca tive paciência para essas tarefas de candidatos à NASA. Seja como for, fui lá e, destemida que estava, comprei aquela caixa repleta de desafios. Ao menos, a imagem a ser formada muito me agradava: um quadro da Anita Malfatti. 

          Mal cheguei ao lar, doce lar, avisei a todos que a mesa da sala ficaria ocupada por tempo indeterminado, pois seria ali que eu iria encaixar todas aquelas pecinhas minúsculas até que, finalmente, me depararia com uma das obras de arte da minha pintora favorita. 

          — Mas, mamãe, onde a gente vai comer?

          — No sofá.

          — Mas a senhora nunca deixou.

          — Pois, a partir de hoje, está permitido. Mas nada de limpar os dedos nas almofadas!

          — Tá bom.

          — E não quero ver nem uma migalha de pão caindo no meu sofá!

          Depois dos avisos dados de maneira ponderada, lá fui eu, aos 44 anos, tomar coragem para começar o desafio de uma vida inteira. Assim que abri a caixa, tomei aquele baita susto. Nunca imaginei que mil peças fossem algo tão numeroso. Mil? Mil. Mil! Mil!! Mil!!! Mil, sim, senhora!

          Tentei não demonstrar espanto diante dos olhares da minha filha e do meu marido. É lógico que não daria o braço a torcer àquela altura do campeonato. E, apesar do quase nocaute, precisava me recompor para bolar uma estratégia para, caso perdesse, que fosse por pontos. A briga seria renhida, mesmo porque nunca fui de levar desaforo para casa.

          Os primeiros dias foram aguerridos, ninguém ousava me perturbar enquanto eu me engalfinhava com aquelas incontáveis mil peças sobre a mesa. Talvez minha família estivesse até gostando, pois deixou de ouvir minhas broncas na hora das refeições.

          — Juliana, tire os cotovelos da mesa.

          — Adriano, você precisa mesmo fazer barulho enquanto mastiga?

          — Quando é que vocês vão aprender que o garfo fica na mão esquerda?

          Já na segunda semana, meu corpo começou a sentir cansaço. A mente, então, já havia se pirulitado para o espaço. E olha que, apesar da figura começar a tomar forma, ainda faltava boa parte daquelas peças do Diabo. Afinal, quem foi o cretino que inventou um jogo que só se pode perder?

          — Mara, meu amor, você tá precisando de ajuda?

          — Ajuda? Tá me chamando de incompetente?

          — Não, querida. Só que você parece estar obcecada com essa coisa.

          Nem quis prosseguir com aquela discussão, pois bem sabia que não iria acabar bem. Voltei meus olhos para aquele exército inimigo e fiquei ali por horas. Alguns progressos, afinal. Aos poucos, encaixei peça por peça e, quando o dia estava amanhecendo, eis que restava apenas um espaço para a última. 

          Cadê a derradeira peça? Teria se escondido atrás do sofá, debaixo das almofadas ou, então, se embrenhado naquelas frestas traiçoeiras? Por mais que eu procurasse, não conseguia encontrá-la, até que percebi a Bebel, nossa buldogue, com algo na boca. Não era possível que a danada mastigando a última peça. E não é que estava?!

          Consegui salvar aquele pedacinho de papelão ou, então, o que restou dele. Um pouco amassado, cheio de baba e sem uma ponta. Não fiquei com raiva da Bebel por isso, já que tive até vontade de rir. Aliás, gargalhei e meus olhos se encheram de lágrimas. Peguei a coleira da minha filha de quatro patas e fomos dar uma volta. 

          Não sei quando irei comprar outro quebra-cabeça. Ouvi dizer que existem alguns de cinco mil peças e de até muito mais. Não sei... Bem, talvez aconteça, mas não no momento. Vou passar um tempo apenas jogando bolinha para a Bebel, que adora. Quanto à mesa, voltou à sua função original. Mas nada de colocar os cotovelos!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O quebra-cabeça da Anita Malfatti" foi publicado por Notibras no dia 14/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-quebra-cabeca-da-anita-malfatti-que-deu-mais-de-uma-dor-de-cabeca-pra-montar/

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