domingo, 15 de junho de 2025

Nunca fui ingênua

         

        Tempos difíceis, mas já estou acostumada. Quase nunca vivi dias tranquilos e, por isso mesmo, jamais me senti personagem de fotonovelas. Fátima, minha irmã mais velha, é que se via nesse mundo de ilusões, como se, de repente, fosse encontrar um príncipe encantado montado em um cavalo branco aqui no Itapoã. Obviamente que não achou nem mesmo alguém em um pangaré.

          Aqui em casa é normal o circo pegar fogo, e eu fico cá no meu canto, ciente de que as chamas, por mais altas que sejam, basta manter a distância adequada para não me queimar. É verdade que, vez ou outra, fico com a pele chamuscada. Quem quiser arrancar os cabelos, que arranque. Os meus só caem por conta própria. 

          Lúcia Maria, 64 anos vividos da forma que pude. Casada algumas vezes, descasada outras tantas. Ingênua? Nem pensar! Tanto é que logo aprendi que esperar por alguém mudar é que nem crente falando que Jesus está voltando. Pra cima de mim? Não tenho paciência para esperar todo o milho estourar, quero mais é pipoca.

          Se a vida é um trem, ainda não conheci a primeira classe. Todavia, já convivi com gente que passou por lá, seja para servir, seja por engano.

          — Maria Lúcia, é tudo igual, só que melhor.

          Quem me disse isso foi Almerinda, doméstica que era tratada como se fosse da família. Bastou engravidar para perder o parentesco. Minha amiga passou um período indigesto, até que a ficha caiu e, então, ela percebeu que aquele modo aparentemente gentil como era tratada não passava de fachada. O pior é que, não raro, ainda a vejo defendendo os antigos patrões quando alguém lhe diz algumas verdades sobre eles. 

          — Você não vai acreditar, Maria Lúcia.

          — Pois diga.

          — Peguei um ônibus errado e fui parar no Park Way.

          — Logo lá?

          — Sim, no meio daqueles casarões de ricaços.

          — Tá, mas e daí?

          — Daí que chegou uma viatura e me abordou. Acabei na delegacia.

          Esse aí é o Juninho, filho da vizinha. Sei que ainda não completou 20 anos, pois conseguiu se livrar, há pouco, do serviço militar por conta da falta de carnes no esqueleto. 

          E, assim, vou levando a vida. Às vezes, melhora um pouco, mesmo que, no minuto seguinte, o trem descarrilha novamente. Enquanto houver oxigênio, sigo respirando.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Nunca fui ingênua" foi publicado por Notibras no dia 15/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/os-perrengues-vividos-por-maria-lucia-no-itapoa/

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