quinta-feira, 19 de junho de 2025

Iranilde e a intolerância à lactose


           Iranilde há tempos sabia que sofria as agruras da intolerância à lactose, inclusive com diagnóstico médico. No entanto, de vez em quando, não resistia e, aí, a coisa desandava. A barriga ficava abarrotada de gases, que eram expelidos sem a menor cerimônia. Não raro, a mulher precisava correr para o banheiro antes que fosse aquele vexame em praça pública. 

          Para evitar esses perrengues, a mulher, quase sempre, seguia fielmente a dieta, o que garantia o bom funcionamento do trato digestório. O problema era quando o diabinho da tentação dava um nó tático no anjinho da razão. Iranilde até fingia certa tenência, o que poderia enganar os mais desavisados, até que ela tentava enganar a si mesma, como se apenas uma beliscadinha não fosse fazê-la entrar em apuros. Só que, de beliscadinha em beliscadinha, o que estava sob controle se tornava calamidade.

          Maria Alice, sobrinha e afilhada de Iranilde, havia sido convidada para a festa de aniversário de uma das colegas da escola. No entanto, os pais precisaram viajar às pressas e, então, a tarefa de levar a menina ficou a cargo da tia. Aliás, tia e madrinha, que, segundo consta nos anais das famílias mais tradicionais, vale mais até do que avó. 

          Como a menina não poderia ficar sozinha, Iranilde assumiu a tutela durante o final de semana. Tudo parecia pura felicidade, já que as duas se davam muito bem. Por isso mesmo, Maria Alice adorou a ideia de a madrinha levá-la para a festinha. 

           Assim que Iranilde e Maria Alice chegaram, a garota correu para brincar com as outras crianças. Enquanto isso, a tia foi convidada para se sentar à mesa de alguns adultos. Educadamente, recusou um copo de cerveja, pois, responsável que era, iria dirigir. Mas aceitou de bom grado refrigerante e salgadinhos sortidos. A empadinha, então, estava uma delícia. 

          O bate-papo também não estava ruim, o que ajudou a fazer com que o tempo voasse. E, não tardou, logo chegou a hora de cantar parabéns para a Verônica, a aniversariante. Nove anos, a mesma idade da Maria Alice. 

          Depois de assoprar as velinhas, o enorme bolo de chocolate, com aquelas coberturas cremosas e recheado de doce de leite, foi servido em generosas fatias aos convidados. Iranilde até tentou dizer não, mas eis que aquele tal diabinho da tentação deu uma bicuda no anjinho da razão. Da primeira dentada, não tardou, a mulher já estava no terceiro pedaço. Só não lambeu os dedos porque estava na frente de adultos, mas vontade não faltou. 

          Final de festa, Maria Alice foi passar o resto do sábado e o domingo na casa da tia. E, assim que estacionou o automóvel, Iranilde apertou o passo, sendo seguida pela sobrinha, que imaginou que aquilo fosse mais uma brincadeira. Que nada! Mal abriu a porta do apartamento, a mulher correu para o banheiro, enquanto a menina, da sala, teve que ouvir todos aqueles estrondos. 

            Quando os pais chegaram para buscar a Maria Alice, foi aquele festival de beijos, abraços e sorrisos. 

          — E aí, minha filha, como foi o final de semana com a sua tia?

          — Mamãe, a tia Iranilde é muito legal!

          — E como foi a festa?

          — Foi show! 

          —  E o bolo era de chocolate?

        Maria Alice, que estava no colo da Iranilde, sorriu aquele sorriso de menina perspicaz.

          — De chocolate e dor de barriga, né, titia?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Iranilde e a intolerância à lactose" foi publicado por Notibras no dia 19/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/iranilde-coitada-sofre-com-intolerancia-a-lactose/

Nenhum comentário:

Postar um comentário