Matias, por conta dessas desgraças que acontecem rotineiramente na
vida de pobre, foi convocado para servir o exército. Que lástima, o jovem
pensou, mas foi lá enfrentar mais esse revés. Lavou latrinas atrás de latrinas,
teve que deglutir aquela gororoba para não morrer de inanição, escutou as mais
descabidas bravatas dos superiores e, por um triz, não tacou a mão na fuça de
um sargento, que se achava o rei da cocada preta.
Órfão de mãe, o jovem aproveitava as folgas para fazer
companhia ao pai, que morava em uma chácara em Padre Bernardo, município
próximo ao Distrito Federal. No entanto, naquele dia, eis que Matias constatou
que estava sem dinheiro para comprar a passagem de ônibus. Não havia jeito e,
então, o rapaz decidiu perambular por Brasília, onde a única coisa que poderia
gastar, além da sola de sapato, era saliva para tentar arrumar uma namorada
endinheirada.
Do quartel até a Torre de TV era uma
distância considerável, mas nada pior do que já enfrentava no dia a dia. Desse
modo, lá foi o recruta em busca da sua princesa milionária, mesmo que a região
central da capital não fosse o local mais apropriado para encontrá-la. Sem
contar que, por conta do serviço obrigatório, o gajo não podia mais cultivar o
bigodinho digno dos galãs dos antigos filmes da Atlântida.
Fazer o quê? Resignado, Matias, apesar do
corpo descarnado pelos abusos sofridos, era jovem o suficiente para possuir lá
alguns atrativos. Sem contar que seu rosto não era de todo desagradável. Havia
um charme ali, mesmo que coberto por tantas agruras impostas pelo pauperismo.
Longe da estampa de galã de novelas, Matias
não se intimidou, já que estava acostumado a enfrentar desafios, quase todos
perdidos, mas que, de algum modo, não o faziam desistir de continuar
respirando, mesmo diante da iminente derrota. Quem visse o rapazola naquele dia
nem suspeitaria que ali estava alguém carregado de confiança. Puro blefe, é
verdade, pois isso é, muitas vezes, a única coisa que os miseráveis conseguem
depositar em seus bolsos furados.
Assim que chegou à Torre de TV, passeou pela
feira de artesanatos apenas para estudar o ambiente. Ficou encantado por uma
arara esculpida em madeira, que atraía a atenção de outras pessoas. Deu mais
alguns passos e, finalmente, resolveu se sentar no gramado, de onde observou
gente em grupo, gente lendo livro, gente de mãos dadas chupando picolé. gente
aguardando o elevador para ter visão privilegiada da capital.
Sol a pino, a sede bateu. Matias, sem um
mísero centavo para comprar uma garrafa d'água, percebeu que, logo ali, havia
uma quantidade do líquido vital capaz de saciar uma cáfila. Não teve dúvida e
se dirigiu à Fonte da Torre de TV.
Chegou, sentou-se à beira, formou uma
concha com as mãos e, em movimentos discretos, bebeu a água que desejou. E tudo
de graça. O rapaz suspirou de alívio, até que percebeu que uma senhora de cerca
de 80 anos o observava. A princípio desconcertado por ter sido descoberto,
Matias se sentiu reconfortado com o sorriso acolhedor da velha.
A mulher se aproximou e, confiante que era, estendeu a mão.
— Antônia.
— Matias.
— Prazer, Matias. O que faz por aqui?
— Vim conhecer.
— Não é daqui?
— Não. Sou de Padre Bernardo.
— E cadê a sua namorada?
— Num tenho namorada, não, dona.
— Antônia. Não sou dona de nada.
— Desculpe. Antônia.
Conversa vem, conversa vai, eis que a nova amiga do Matias resolveu
convidá-lo para almoçar. Diante da perspectiva de degustar algo certamente
melhor do que lhe era oferecido no quartel, ele não se fez de rogado. E lá
estavam aqueles dois dentro do Fusca da Antônia a caminho de um tradicional
restaurante na W3 Norte.
Carne de sol, aipim frito, arroz, feijão-de-corda, refrigerante e, o
melhor, tudo pago por sua mais nova amiga. Matias, saciado, não acreditava que
a sorte estava ao seu lado. É verdade que não havia conhecido uma princesa
endinheirada, mas, ao menos, conheceu uma senhora que parecia ser caridosa
diante da flagrante pobreza do jovem.
Após pagar a conta, Antônia levou Matias até o
quartel. Automóvel estacionado, o soldado estendeu a mão em agradecimento, quando
foi surpreendido por um inesperado beijo na boca. Sem reação, o rapaz não teve
escolha a não ser retribuir o afeto. Beijaram-se longamente até que, quase sem
fôlego, os enamorados se despediram.
Do
portão do quartel, Matias se virou e acenou com as mãos para Antônia, que ligou
o Fusca e foi embora. De barriga cheia, o recruta aprendeu mais uma lição de
vida: não existe almoço grátis.
- Nota de esclarecimento: O conto "Matias, o recruta" foi publicado por Notibras no dia 24/6/2025.
- https://www.notibras.com/site/matias-recruta-liso-almoca-bem-e-paga-com-um-beijo/
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