Como não
há consenso de onde exatamente o fato se deu, porém necessitado de dar um
endereço, escolho que tenha sido, vamos ver, Sobradinho II, no Distrito
Federal. Lugar pitoresco, cujas características me fazem lembrar de certas
cidades do interior de Goiás.
Segundo fiquei sabendo, havia os policiais do
expediente e, também, os do plantão, sendo que estes se dividiam em cinco
equipes em turnos de 12 horas. Nesse constante rodízio, o delegado, o escrivão
e os agentes de uma equipe saíam, enquanto outro grupo de mesmos cargos entravam.
E tudo permanecia na mais perfeita ordem, até que, talvez por sentimentos não
tão nobres, eis que o imbróglio surgiu por conta de uma mesa.
Para que você não fique com qualquer dúvida,
primeiro falarei sobre essa mesa, que causou desavença entre delegados e
escrivães. Quatro dos escrivães plantonistas, Benevides, Raí, Vantuil e
Fernando, sabiam que Alexandrino, o quinto, era um talentoso curioso na arte da
carpintaria. Dessa forma, fizeram uma vaquinha para o colega fazer a mesa, que
serviria como apoio para o trabalho deles. E assim foi feito.
De tão bonita e funcional ficou a mesa, que
o delegado Fargo, justamente o da equipe do Alexandrino, a desejou para si e,
então, na maior cara de pau, e se aproveitando de que o escrivão estava de férias,
a levou para a sala dos delegados. O problema é que, assim que houve a
troca de plantão, Benevides logo sentiu falta da mesa.
O escrivão se dirigiu à sala do delegado Vando a fim de
tentar elucidar aquele mistério. Ele se deparou com a porta fechada. Deu dois
toques.
— Doutor, por acaso a mesa que o Alexandrino fez tá aí?
— Tá, não.
— Tem certeza?
— Tenho.
Benevides, desconfiado do tom de voz do delegado, insistiu.
— Tem certeza mesmo, doutor?
— Tenho.
Ainda não satisfeito, o escrivão decidiu abrir a porta.
— Oxe, olha a mesa aí, doutor!
— Ei, você não pode pegar essa mesa!
— E por que não?
— Hum... A mesa é do Alexandrino.
— Não, não, não! A mesa é de todos os escrivães.
— Aqui é asilo inviolável do delegado! Você só
pode entrar aqui com autorização da autoridade policial, que sou eu.
— Não, não e não, doutor! O senhor está em
flagrante. E bem sabe o senhor que, estando em flagrante, não tem violação de
domicílio, não.
— E é flagrante do quê?
— De furto!
— Mas não fui eu que trouxe a mesa pra cá.
— Então, flagrante de receptação.
— Mas eu não sabia de quem era a mesa.
— Pois bem, doutor, então, é receptação
culposa.
Benevides, amparado na força da lei, retirou
os pertences do delegado sobre a mesa e a levou de volta para a sala dos
escrivães. Entretanto, não faltaram protestos do Vando e, alguns dias após, do
Fargo, que entraram com uma liminar junto ao delegado-chefe, que já estava
pendendo a aceitar os argumentos apresentados. Mas eis que Rupereta, outro
delegado plantonista, tomou as dores dos escrivães e, desse modo, utilizou
parte do seu amplo conhecimento jurídico e, por fim, suspendeu a liminar.
Vitorioso, lá foi o delegado Rupereta, mesa nas mãos, levá-la de volta para a sala dos escrivães. Mas eis que, por uma dessas fatalidades, ao entrar, esbarrou a quina do móvel com o portal. Crac! E, ali mesmo, a mesa da discórdia se desmanchou sob os olhares de desencanto do escrivão Benevides.
- Nota de esclarecimento: O conto "A mesa da discórdia" foi publicado por Notibras no dia 17/6/2025.
- https://www.notibras.com/site/mesa-dos-escrivaes-provoca-inveja-em-delegados/
Nenhum comentário:
Postar um comentário