quarta-feira, 4 de junho de 2025

Dona Gertrudes, a cúmplice

    

            Apesar dos olhares, desconfiado por parte da esposa, e carregado de culpa do marido, aquele casal parecia levar uma vida confortavelmente hipócrita. Mas nada fora do comum nos conturbados anos 1960, quando as liberdades foram suprimidas em nome da moral e dos bons costumes. E não pense você que isso foi empecilho para que o quatrilho continuasse a ser praticado, mesmo que, até onde se tem notícia, apenas metade dos jogadores estivesse disposta a participar. 

          Vantuir, casado com Araci, era descaradamente amante da prima, Noêmia, que vivia em comunhão com Amâncio, cujo comércio o impedia de dar a atenção necessária à companheira. Aliás, quanto a esse ponto, há controvérsias, pois, dizem certas línguas ferinas, a mulher do comerciante seria capaz de acender a lareira com um breve estalo de dedos. 

          Para colocar ainda mais lenha na fogueira, todos residiam no mesmo prédio em Taguatinga, no Distrito Federal.  Vantuir e Araci, no apartamento 301; Noêmia e Amâncio, no 101. Sem contar a dona Gertrudes, viúva do 201, que, quando requisitada, acobertava seus sobrinhos adúlteros. Todavia, a velha não fazia isso apenas por vínculos familiares.

          Apaixonada por quindim e queijadinha, dona Gertrudes, na falta de um desses quitutes, não fazia doce e aceitava de bom grado um belo brigadeiro, ainda mais os que chegavam generosamente carregados de granulado. Ela recebia o mimo, enquanto os amantes se dirigiam para o quartinho dos fundos, onde confabulavam até que a parenta fosse lhes comunicar sobre a chegada dos respectivos cônjuges. 

          Não foram poucas as vezes que a idosa precisou passar as calças de tergal do sobrinho ou, então, limpar a mancha de batom da gola da camisa social. Desquite na família era algo impensável naqueles idos, e dona Gertrudes não queria que Noêmia ficasse falada. E a matriarca bem sabia que até os respingos da separação atingiriam a honra de Araci, por quem tinha sincera consideração. Quanto ao Amâncio, o escândalo poderia levar o comércio do gajo à falência. 

          Salva a família, dona Gertrudes seguia ilibada, até que, por uma dessas falhas de consciência, eis que o coração, talvez descompensado pelo excesso de açúcar, resolveu entregar os pontos. Nem deu tempo de os amados sobrinhos, que haviam concluído o ato, socorrerem a cúmplice.

          O velório ocorreu na manhã seguinte, quando até as nuvens cinzentas acompanharam o choro dos presentes. E, entre os mais combalidos, estavam Vantuir e Araci, inconformados com a repentina desencarnação da tia. Os dois, cada um de um lado do caixão, seguravam as mãos da defunta, cujos lábios, a partir daquele momento, estariam mais fechados do que nunca. 

          Os pares traídos perceberam o desespero dos cônjuges e, assim que o enterro foi concluído, foram consolá-los. Araci, voz embargada, tomou a iniciativa.

          — Não sabia que vocês eram tão ligados à dona Gertrudes. Quer dizer, ela era tia de vocês, uma pessoa maravilhosa, mas não fazia ideia de como vocês a amavam.

          — Titia era uma santa, Araci. Uma santa! Você não imagina como ela rezava pra que tudo ficasse bem não apenas no meu casamento com o Amâncio, mas no seu com o Vantuir, meu primo tão querido.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dona Gertrudes, a cúmplice" foi publicado por Notibras no dia 4/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dona-gertrudes-cumplice-silenciosa-das-traicoes-conjugais-dos-sobrinhos/

Nenhum comentário:

Postar um comentário