quarta-feira, 18 de junho de 2025

O mecânico e o pastor

   

E não é que o Leopoldo, dono da mais afamada oficina de Sobradinho, a Magnu, foi arrumar imbróglio justamente com um pastor?! Isso mesmo, com um pastor e, pior, do tipo que roga praga a torto e a direito. E tudo por conta de uma bobagem: os costumeiros atrasos da entrega dos serviços, algo que já virou marca registrada da mecânica. 

          Os reparos na antiga Variant não eram tão complicados assim. Nada mais do que troca da correia dentada e da limpeza do carburador. Entretanto, Leopoldo não é adepto de serviços corridos, mesmo porque o sujeito faz questão de inspecionar cada detalhe como se fosse tese de doutorado. 

          Insatisfeito com a demora, o cliente, cansado de tantas desculpas esfarrapadas, foi pessoalmente à Magnu para ver se agilizava a entrega do seu veículo. Obviamente que não conseguiu muita coisa e, diante da incapacidade humana de resolver a situação, levantou as mãos para o céu e apelou diretamente ao Senhor.

          — Olha, Jesus, não deixa o mecânico ficar impossibilitado, não, Jesus. Dá saúde pra ele, dá força, levanta ele, Jesus. E hoje é sexta!

          Leopoldo e seus funcionários, acostumados a ver quase tudo, arregalaram os olhos para aquele monólogo.

        — Meu Deus, o senhor que pega mecânico, ah, Deus, dá um jeito nesse povo, enfia fogo neles, faz cair uma porca quente e soldada depois dentro da bota dele, Jesus, pra ele não dar conta nem de pular. Oh, Deus, faz o carro dele quebrar na rua, nem pro Sul nem pro Norte, pra ele ficar lá, pelo menos um dia inteiro lá esperando.

        O pastor, após recorrer a quem considerava a última instância, voltou os olhos para Leopoldo e, sem papas na língua, descascou.

        — Seu Leopoldo, quero saber quando é que o meu serviço vai sair, seu incircunciso. Se você está com um balde de manguaça, é Heineken, é não sei mais o quê. Olha aí se o serviço vai sair, não vai sair nunca, rapá. Você, Boquinha e esse seu assistente número zero quase não bebe. Pense num homem que está dormindo bêbado e acordando torto, enquanto o pau tá quebrando. Vamos embora, porra!

          Leopoldo, cansado daquela ladainha, resolveu ele mesmo concluir o serviço e, em pouco mais de meia hora, finalmente entregou a Variant para o pastor. O religioso, mesmo assim, saiu cuspindo maribondo. Todavia, não tardou, precisou retornar para a Magnu, já que o seu automóvel, antigo que é, precisou de novos reparos já na semana seguinte. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O mecânico e o pastor" foi publicado por Notibras no dia 18/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/pastor-recorre-a-jesus-para-ter-carro-consertado-mas-o-servico-fica-pela-metade/

terça-feira, 17 de junho de 2025

A mesa da discórdia

          

            Se há coisas que só acontecem ao Botafogo, há outras tantas que os inocentes nem imaginam que ocorrem dentro de uma delegacia. E, caso alguém se atreva a contá-la, certamente sofrerá injusta acusação de mentiroso. Seja como for, a história é tão boa, que vale a pena correr tamanho risco. 

            Como não há consenso de onde exatamente o fato se deu, porém necessitado de dar um endereço, escolho que tenha sido, vamos ver, Sobradinho II, no Distrito Federal. Lugar pitoresco, cujas características me fazem lembrar de certas cidades do interior de Goiás. 

          Segundo fiquei sabendo, havia os policiais do expediente e, também, os do plantão, sendo que estes se dividiam em cinco equipes em turnos de 12 horas. Nesse constante rodízio, o delegado, o escrivão e os agentes de uma equipe saíam, enquanto outro grupo de mesmos cargos entravam. E tudo permanecia na mais perfeita ordem, até que, talvez por sentimentos não tão nobres, eis que o imbróglio surgiu por conta de uma mesa. 

          Para que você não fique com qualquer dúvida, primeiro falarei sobre essa mesa, que causou desavença entre delegados e escrivães. Quatro dos escrivães plantonistas, Benevides, Raí, Vantuil e Fernando, sabiam que Alexandrino, o quinto, era um talentoso curioso na arte da carpintaria. Dessa forma, fizeram uma vaquinha para o colega fazer a mesa, que serviria como apoio para o trabalho deles. E assim foi feito.

          De tão bonita e funcional ficou a mesa, que o delegado Fargo, justamente o da equipe do Alexandrino, a desejou para si e, então, na maior cara de pau, e se aproveitando de que o escrivão estava de férias, a levou para a sala dos delegados. O problema é que, assim que houve a troca de plantão, Benevides logo sentiu falta da mesa.

            O escrivão se dirigiu à sala do delegado Vando a fim de tentar elucidar aquele mistério. Ele se deparou com a porta fechada. Deu dois toques.

            — Doutor, por acaso a mesa que o Alexandrino fez tá aí?

            — Tá, não.

            — Tem certeza?

            — Tenho.

            Benevides, desconfiado do tom de voz do delegado, insistiu.

            — Tem certeza mesmo, doutor?

            — Tenho.

            Ainda não satisfeito, o escrivão decidiu abrir a porta.

            — Oxe, olha a mesa aí, doutor!

            — Ei, você não pode pegar essa mesa!

            —  E por que não?

            — Hum... A mesa é do Alexandrino.

            — Não, não, não! A mesa é de todos os escrivães.

          — Aqui é asilo inviolável do delegado! Você só pode entrar aqui com autorização da autoridade policial, que sou eu.

          — Não, não e não, doutor! O senhor está em flagrante. E bem sabe o senhor que, estando em flagrante, não tem violação de domicílio, não.

          — E é flagrante do quê?

          — De furto!

          — Mas não fui eu que trouxe a mesa pra cá.

          — Então, flagrante de receptação.

          — Mas eu não sabia de quem era a mesa.

          — Pois bem, doutor, então, é receptação culposa. 

          Benevides, amparado na força da lei, retirou os pertences do delegado sobre a mesa e a levou de volta para a sala dos escrivães. Entretanto, não faltaram protestos do Vando e, alguns dias após, do Fargo, que entraram com uma liminar junto ao delegado-chefe, que já estava pendendo a aceitar os argumentos apresentados. Mas eis que Rupereta, outro delegado plantonista, tomou as dores dos escrivães e, desse modo, utilizou parte do seu amplo conhecimento jurídico e, por fim, suspendeu a liminar. 

          Vitorioso, lá foi o delegado Rupereta, mesa nas mãos, levá-la de volta para a sala dos escrivães. Mas eis que, por uma dessas fatalidades, ao entrar, esbarrou a quina do móvel com o portal. Crac! E, ali mesmo, a mesa da discórdia se desmanchou sob os olhares de desencanto do escrivão Benevides. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A mesa da discórdia" foi publicado por Notibras no dia 17/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/mesa-dos-escrivaes-provoca-inveja-em-delegados/

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Padoca do Ernesto

    

          Padoca do Ernesto. Era esse o nome da mais afamada padaria do bairro. A fila dobrava o quarteirão, mas valia a pena cada minuto esperado, já que o pão de sal era, de longe, o mais apetitoso da região. Tanto é que, não raro, as pessoas já degustavam tamanha iguaria no caminho de volta.    

          Ernesto, o dono da panificadora, apesar do lucro cada vez maior, andava aborrecido com Cláudio, o padeiro. É que o sujeito, apesar de tarimbado na lida dos ingredientes do produto mais vendido, não era muito afeito a horários, ainda mais quando se enrabichava para o lado de alguma moçoila formosa. Ih, aí é que as desculpas pelos atrasos eram as mais esdrúxulas.

          — Cláudio, atrasado de novo?

          — Seu Ernesto, o senhor não vai acreditar.

          — Pois, então, nem perca o seu tempo e, também, não me faça perder o meu com essas suas desculpas esfarrapadas.

          — Hum! Mas minha tia morreu.

          — A que era a única irmã da sua mãe?

          — Essa mesma. Que tristeza! Mamãe tá desolada.

          — Cláudio, mas essa sua tia já não tinha morrido no mês passado?

          Cansado dos constantes atrasos, o dono da padaria não teve outra alternativa senão mandar o funcionário embora. Todavia, mal sabia Ernesto, as vendas despencaram desde então. E olha que ele até baixou o preço, o que não causou muito efeito. 

          O comerciante, temendo pelo pior, desabafou com dona Regina, cliente de longa data. A mulher havia sumido do estabelecimento, e Ernesto a encontrou, por acaso, na rua.

          — Dona Regina, como vai a senhora?

          — Vou bem, obrigada. E o senhor?

          — Não muito bem.

          — O que houve, homem?

          — Acho que vou ter que fechar as portas da padaria.

          — Até sei o motivo.

          — Sabe?

          — Sim.

          — E qual é?

          — O pão.

          — O pão?       

— É.

          — E o que tem o pão?

          — O pão não é bom.

          — Não?

          — Seu Ernesto, não sei se o senhor trocou o padeiro, mas o pão está horrível.

          — Mas pão é pão. É tudo igual.

          — Pois lhe digo que o senhor está redondamente enganado.

          — Conversa! Os ingredientes são os mesmos, dona Regina.

          — Podem até ser, seu Ernesto, mas o suor do outro padeiro era melhor.  

          Diante de tamanha revelação, o dono da padaria não teve escolha. Foi atrás do Cláudio, que já estava trabalhando na concorrente, que ficava no bairro ao lado. E, após negociações, que envolveram até substancial aumento salarial, conseguiu convencer o melhor padeiro da região a voltar.

          A Padoca do Ernesto voltou a ser frequentada como antes, os lucros cada vez maiores. Quanto aos atrasos, eles ainda acontecem. Cláudio inventa uma desculpa qualquer, Ernesto finge acreditar, inclusive quando o padeiro esquece que já matou a tia pelo menos quatro vezes. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Padoca do Ernesto" foi publicada por Notibras no dia 16/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/cansado-de-desculpas-esfarrapadas-ernesto-decide-enfim-demitir-padeiro/

domingo, 15 de junho de 2025

Nunca fui ingênua

         

        Tempos difíceis, mas já estou acostumada. Quase nunca vivi dias tranquilos e, por isso mesmo, jamais me senti personagem de fotonovelas. Fátima, minha irmã mais velha, é que se via nesse mundo de ilusões, como se, de repente, fosse encontrar um príncipe encantado montado em um cavalo branco aqui no Itapoã. Obviamente que não achou nem mesmo alguém em um pangaré.

          Aqui em casa é normal o circo pegar fogo, e eu fico cá no meu canto, ciente de que as chamas, por mais altas que sejam, basta manter a distância adequada para não me queimar. É verdade que, vez ou outra, fico com a pele chamuscada. Quem quiser arrancar os cabelos, que arranque. Os meus só caem por conta própria. 

          Lúcia Maria, 64 anos vividos da forma que pude. Casada algumas vezes, descasada outras tantas. Ingênua? Nem pensar! Tanto é que logo aprendi que esperar por alguém mudar é que nem crente falando que Jesus está voltando. Pra cima de mim? Não tenho paciência para esperar todo o milho estourar, quero mais é pipoca.

          Se a vida é um trem, ainda não conheci a primeira classe. Todavia, já convivi com gente que passou por lá, seja para servir, seja por engano.

          — Maria Lúcia, é tudo igual, só que melhor.

          Quem me disse isso foi Almerinda, doméstica que era tratada como se fosse da família. Bastou engravidar para perder o parentesco. Minha amiga passou um período indigesto, até que a ficha caiu e, então, ela percebeu que aquele modo aparentemente gentil como era tratada não passava de fachada. O pior é que, não raro, ainda a vejo defendendo os antigos patrões quando alguém lhe diz algumas verdades sobre eles. 

          — Você não vai acreditar, Maria Lúcia.

          — Pois diga.

          — Peguei um ônibus errado e fui parar no Park Way.

          — Logo lá?

          — Sim, no meio daqueles casarões de ricaços.

          — Tá, mas e daí?

          — Daí que chegou uma viatura e me abordou. Acabei na delegacia.

          Esse aí é o Juninho, filho da vizinha. Sei que ainda não completou 20 anos, pois conseguiu se livrar, há pouco, do serviço militar por conta da falta de carnes no esqueleto. 

          E, assim, vou levando a vida. Às vezes, melhora um pouco, mesmo que, no minuto seguinte, o trem descarrilha novamente. Enquanto houver oxigênio, sigo respirando.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Nunca fui ingênua" foi publicado por Notibras no dia 15/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/os-perrengues-vividos-por-maria-lucia-no-itapoa/

sábado, 14 de junho de 2025

O quebra-cabeça da Anita Malfatti

    

Não sei se acontece aí com você, mas, aqui em casa, alguns brinquedos parecem ter vida própria. Do nada, somem, como se fossem dar um passeio. Nem avisam. Nem se preocupam se vamos ou não sentir sua falta. No entanto, para minha surpresa, quase me fazem soltar um palavrão vez ou outra.

          — Então, tu tá aí, seu filho da mãe?

          Geralmente é atrás do sofá, debaixo da almofada do sofá, entranhado naquelas frestas do maldito sofá. Entretanto, pode se esconder, na maior cara de pau, diante dos nossos olhos bem em cima da bancada da cozinha. Mas o que mais me irrita é ter que completar as peças do jogo de damas com uma tampinha de refrigerante. 

          Tenho cá minhas ideias e, com elas, acabei desenvolvendo teoria própria. Nem sei se é válida cientificamente, mas é nela em que acredito. Brinquedos possuem almas sarcásticas e, por isso, gostam de aplicar peças nos seres humanos. Inclusive aquelas tais peças de lego o fazem com frequência e certa maldade. Quem, afinal, nunca pisou em uma maldita peça de lego? E, comigo, é sempre quando estou descalça e, invariavelmente, naquela parte do pé que mais dói, tamanho o desprovimento de carnes na região.

          Outra que aconteceu comigo foi quando inventei de montar um quebra-cabeça de mil peças. Logo eu, que nunca tive paciência para essas tarefas de candidatos à NASA. Seja como for, fui lá e, destemida que estava, comprei aquela caixa repleta de desafios. Ao menos, a imagem a ser formada muito me agradava: um quadro da Anita Malfatti. 

          Mal cheguei ao lar, doce lar, avisei a todos que a mesa da sala ficaria ocupada por tempo indeterminado, pois seria ali que eu iria encaixar todas aquelas pecinhas minúsculas até que, finalmente, me depararia com uma das obras de arte da minha pintora favorita. 

          — Mas, mamãe, onde a gente vai comer?

          — No sofá.

          — Mas a senhora nunca deixou.

          — Pois, a partir de hoje, está permitido. Mas nada de limpar os dedos nas almofadas!

          — Tá bom.

          — E não quero ver nem uma migalha de pão caindo no meu sofá!

          Depois dos avisos dados de maneira ponderada, lá fui eu, aos 44 anos, tomar coragem para começar o desafio de uma vida inteira. Assim que abri a caixa, tomei aquele baita susto. Nunca imaginei que mil peças fossem algo tão numeroso. Mil? Mil. Mil! Mil!! Mil!!! Mil, sim, senhora!

          Tentei não demonstrar espanto diante dos olhares da minha filha e do meu marido. É lógico que não daria o braço a torcer àquela altura do campeonato. E, apesar do quase nocaute, precisava me recompor para bolar uma estratégia para, caso perdesse, que fosse por pontos. A briga seria renhida, mesmo porque nunca fui de levar desaforo para casa.

          Os primeiros dias foram aguerridos, ninguém ousava me perturbar enquanto eu me engalfinhava com aquelas incontáveis mil peças sobre a mesa. Talvez minha família estivesse até gostando, pois deixou de ouvir minhas broncas na hora das refeições.

          — Juliana, tire os cotovelos da mesa.

          — Adriano, você precisa mesmo fazer barulho enquanto mastiga?

          — Quando é que vocês vão aprender que o garfo fica na mão esquerda?

          Já na segunda semana, meu corpo começou a sentir cansaço. A mente, então, já havia se pirulitado para o espaço. E olha que, apesar da figura começar a tomar forma, ainda faltava boa parte daquelas peças do Diabo. Afinal, quem foi o cretino que inventou um jogo que só se pode perder?

          — Mara, meu amor, você tá precisando de ajuda?

          — Ajuda? Tá me chamando de incompetente?

          — Não, querida. Só que você parece estar obcecada com essa coisa.

          Nem quis prosseguir com aquela discussão, pois bem sabia que não iria acabar bem. Voltei meus olhos para aquele exército inimigo e fiquei ali por horas. Alguns progressos, afinal. Aos poucos, encaixei peça por peça e, quando o dia estava amanhecendo, eis que restava apenas um espaço para a última. 

          Cadê a derradeira peça? Teria se escondido atrás do sofá, debaixo das almofadas ou, então, se embrenhado naquelas frestas traiçoeiras? Por mais que eu procurasse, não conseguia encontrá-la, até que percebi a Bebel, nossa buldogue, com algo na boca. Não era possível que a danada mastigando a última peça. E não é que estava?!

          Consegui salvar aquele pedacinho de papelão ou, então, o que restou dele. Um pouco amassado, cheio de baba e sem uma ponta. Não fiquei com raiva da Bebel por isso, já que tive até vontade de rir. Aliás, gargalhei e meus olhos se encheram de lágrimas. Peguei a coleira da minha filha de quatro patas e fomos dar uma volta. 

          Não sei quando irei comprar outro quebra-cabeça. Ouvi dizer que existem alguns de cinco mil peças e de até muito mais. Não sei... Bem, talvez aconteça, mas não no momento. Vou passar um tempo apenas jogando bolinha para a Bebel, que adora. Quanto à mesa, voltou à sua função original. Mas nada de colocar os cotovelos!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O quebra-cabeça da Anita Malfatti" foi publicado por Notibras no dia 14/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-quebra-cabeca-da-anita-malfatti-que-deu-mais-de-uma-dor-de-cabeca-pra-montar/

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Chefe e o Presidente

    É raro, mas acontece de calhar de estar em Brasília para encontrar os baluartes do Notibras: José Seabra, o Chefe, e Armando Cardoso, o Presidente. Para provar que a tarefa não é tão fácil, basta lembrar que o primeiro é o mandachuva da Sucursal Nordeste do Notibras e, por isso, vive em frente à incomparável praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho-PE. Já o Armando é o presidente do Conselho Editoria de Notibras, na capital do país.

       Sabe aqueles caras que você quase não vê, mas, quando chega a hora, é aquela sintonia, que é como se nos encontrássemos diariamente? Pois é assim que é, ainda mais porque, literalmente, todos os dias converso várias vezes com o Chefe, sem contar que o Armando e eu trocamos confidências duas ou três vezes por dia. Aliás, o Presidente vive me instigando a ser torcedor do Flamengo, como se isso fosse a resolução de todos os meus problemas. 

        — Edu, meu irmão, venha pro Mengão, que o estresse desaparece rapidinho.

        — Presidente, se eu não quisesse me estressar, seria torcedor do Real Madrid.

        Para quem não sabe, o Chefe é um dos mais resilientes torcedores do Vasco, time por qual sempre tive carinho especial, haja vista a sua incansável luta contra o racismo. Sem falar que o meu papai era vascaíno dos mais fervorosos, e foi por suas mãos que fui levado para assistir ao primeiro jogo ao vivo no Maracanã nos idos de 1978, com direito a dois golaços do saudoso Roberto Dinamite na virada contra o Corinthians: Vasco 3 x 1.

       Apesar de tantos chamamentos, não tinha como eu não ter sido escolhido pelo Botafogo (ao contrário dos outros torcedores, o botafoguense não escolhe ser, mas é escolhido), já que nasci ali, morei ali e, apesar de ser apaixonado por Copacabana, sigo os ensinamentos da minha avó materna, Esther Stella Cesario: "Edu, nunca se esqueça de onde você veio."

        Mas deixemos o futebol de lado, pois queria enaltecer esses dois Atlas do jornalismo, que são os sustentáculos do Notibras, que está completando 26 anos no ar. Faltou muita gente na fotografia, é verdade. Entretanto, creio que ela consegue representar a essência do nosso jornal virtual. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O Chefe e o Presidente" foi publicada por Notibras no dia 13/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-chefe-o-presidente-e-o-botafoguense-que-admira-atlas-do-nosso-jornalismo/

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Marília, o trabalho e o medo

    

Hoje acordei com cheiro de domingo. Não qualquer domingo, mas daqueles de enrolar o máximo possível para sair da cama, pois nada lá fora parece ser mais agradável do que pestanas firmes no propósito de se manterem solenemente fechadas. E nem preciso sonhar, a não ser se for um sonho de lençóis amarrotados de tanto dormir. E pensar que hoje ainda é quarta-feira.

       Morar sozinha tem lá suas vantagens. Todavia, não sei qual a razão, só consigo imaginar as mazelas de tal condição. Ninguém para me trazer café da manhã na cama. Nem mesmo uma alma caridosa para me falar que a pilha de louça da semana já foi lavada. Cadê meu chefe, que ainda não me ligou para contar que hoje não preciso ir trabalhar? 

          Há tempos que trabalho. E, pode ter certeza, odeio trabalhar. Mas é um não gostar sem culpa, ao contrário do que percebo nos meus colegas. 

          — Ah, Marília, trabalhar é bom, sim.

          — Marília, o trabalho engrandece o homem. Ah, a mulher também.

          — Mas, Marília, o que seria do mundo sem o trabalho?

          — Marília, trabalho por amor.

          Quantas afirmações, uma mais tola do que a outra. O pior é que esse povo parece acreditar nessas tolices que saem sem qualquer resquício de vergonha, como papagaio que repete algo, mas, se perguntar, não tem a menor ideia do que disse. 

          Trabalho por medo. Medo de não ter onde morar. Medo de não ter o que comer. Medo de não ter dinheiro para ir ao cinema. Medo de não ter como pagar por um livro. Medo de ter a luz e a água cortadas por falta de pagamento. Medo. É simplesmente o medo que me expulsa do conforto da minha cama. Nada além do que o medo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Marília, o trabalho e o medo" foi publicado por Notibras no dia 12/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/marilia-o-trabalho-e-o-medo-de-deixar-o-emprego/

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Cadê a girafa?

              Minha caçula, a Malulinha, adora brincar de imitar os animais. Lobo, galo, gato, tigre, cachorro, vaca, pato, ovelha, todos esses com sons relativamente fáceis, e ela é muito boa, especialmente quando, do nada, lanço um desafio.

                      — Cadê a onça brava?

                   Pra quê? Do nada, ela mostra os dentes e solta aquele rugido de assustar qualquer um. No entanto, a brincadeira não para por aí.

                   — Cadê o gorila?

            A minha filha me encara com aqueles olhos lindos de criança feliz e, do nada, fecha as mãozinhas e começa a bater no peito. A minha esposa, a Dona Irene, faz cara de satisfação. Coisa de mamãe coruja.

                   — Malulinha, cadê o peixe?

                   E lá vai a minha filha fazer biquinho com os lábios. Gente, não é que ela sabe mesmo imitar um peixe?

                A Dona Irene, talvez querendo instigar a criatividade da Malulinha, não perdoa e, não demora, entra na brincadeira.

               — Malulinha, cadê a girafa?

            Nossa garotinha olha para a mamãe e, em seguida, volta o rosto para mim na ânsia de buscar socorro. Pois é, enquanto tenho certeza de que a minha esposa pegou pesado, eis que a Malulinha estica o pescoço e solta aquela gargalhada. E, a partir de então, girafa é o que ela e eu mais gostamos de imitar.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Cadê a girafa?" foi publicada por Notibras no dia 11/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/cade-a-girafa-e-malulinha-estica-o-pescoco-levanta-a-cabeca-e-solta-gargalhada/

terça-feira, 10 de junho de 2025

O homem que nunca faltava ao trabalho

        

Atílio até poderia ser classificado como um tipo comum, caso não fosse por uma particularidade. É que ele não faltava um dia no trabalho. Poderia arder em febre, cair canivete, o sujeito saía do pequeno apartamento na Asa Sul, pegava o ônibus no mesmo ponto e, sentado sempre ao fundo, chegava à repartição antes de todos. Não falhava nem um dia sequer. Sempre pontual.

          Não gostava de emendar feriados, mas o fazia por falta de alternativa, já que todos eram liberados e, afinal, não havia o que fazer. Mesmo em casa, só se sentia livre para curtir na data destacada no calendário preso à porta da geladeira. E, quando retornava à labuta, trabalhava com mais afinco ainda, como se precisasse mostrar a todos que levava aquilo a sério. 

           Durante as greves, Atílio fazia de tudo para burlá-las, o que era visto como afronta pelos colegas. O paradoxo é que era filiado ao sindicato, pois acreditava piamente que era necessário lutar pelos direitos dos trabalhadores. E, mesmo contraditório, era a favor das paralisações, apesar de nunca ter participado efetivamente de uma.

          Certo dia, quando tomava café, observou o bloco de notas sobre a mesa da cozinha. Algumas tarefas inadiáveis, como era tudo em sua vida. Também aconteceria, naquele dia, a costumeira reunião de final de mês, o que lhe provocava certa satisfação, pois era o momento de colocar a chefia a par do que havia sido feito ao longo do período. 

            Sorveu mais um gole e, quando resolveu encher novamente a xícara, eis que sentiu uma pontada no peito. Foi tão forte, que teve a sensação de estar debaixo da pata de um elefante. Arregalou os olhos, como se percebesse que aquilo era deveras grave.

Teve tempo de pegar a caneta no bolso da camisa e fazer uma anotação em uma folha, que foi arrancada do bloco. De tanta dor, o papel foi amassado por sua mão esquerda antes do gajo tombar e cair no piso. 

            O corpo de Atílio foi encontrado no mesmo dia. Joaquim, seu chefe, preocupado com a ausência do mais pontual funcionário, foi até a sua residência. A porta acabou arrombada pelo Corpo de Bombeiros, que encontrou o defunto. 

       Joaquim percebeu o papel amassado no chão e sentiu que fosse um bilhete de despedida. Quase caiu para trás quando o leu: "Por favor, avisem que hoje não vou trabalhar."

  • Nota de esclarecimento: O conto "O homem que nunca faltava ao trabalho" foi publicado por Notibras no dia 10/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-homem-que-nunca-faltava-ao-trabalho-faltou/

segunda-feira, 9 de junho de 2025

O dia em que fui trabalhar com o meu Fusca

   

            Aconteceu no final do século XX, quando nem existia o SAMU. Naquele tempo, então, se acontecia alguma coisa, os próprios parentes ou qualquer um que passasse pelo local prestava socorro, levava para o hospital. Nessa época, eu era proprietária de um Fusca 1600, cor cinza, uma belezura. O danado até tinha nome: Tufão. 

          Como eu trabalhava longe de casa, costumava pegar ônibus. No entanto, nem me lembro do motivo, resolvi tirar o Tufão da garagem. E lá fui eu, janela aberta, sem pressa de chegar, apreciando a vista, quando, logo adiante, percebi uma multidão. 

          Não chego a ser vidente, mas, não raro, minha intuição não falha. Senti um frio na espinha e, então, tive certeza de que se tratava de um acidente. E não é que estava certa? Bastou o Tufão vencer algumas centenas de metros para que fosse possível ver o estrago: um Corcel amarelo havia derrubado um poste. 

          Não tive dúvida. Parei o Tufão, mas o deixei ligado. Um rapaz me disse que o motorista, em estado gravíssimo, fora socorrido por um homem em um Opala laranja. Já a passageira, que parecia ser a esposa, continuava deitada no asfalto. Ela estava inconsciente. 

          Assim que me aproximei para tomar ciência da situação, nova onda de calafrio percorreu meu corpo. Foi o empurrão que a razão me deu para tomar a vítima no colo e colocá-la no banco de trás do Tufão. Sempre fui pequena, mas tenho os braços fortes, talhados de tanto que carregava a minha sogra para lhe dar banho, e olha que a velha era muito maior do que a acidentada. 

          Como precisava acudir a vítima, gritei para os curiosos, que pareciam inertes diante do caos:

          — Alguém sabe dirigir?

          Um sujeito apareceu e logo se acomodou no banco do motorista. Arrancou para o hospital, enquanto eu tentava reanimar a mulher em meus braços. Foi questão de minutos que chegamos e, para chamar a atenção dos profissionais de saúde, usei todo o ar nos meus pulmões:

          — Tragam uma maca! Tragam uma maca!

          Assim que tirei a mulher do banco de trás do Tufão, eis que ela deu um longo suspiro. O último. O médico, que estava logo atrás de mim, me conhecia dos tempos em que ainda trabalhava como enfermeira. Ele tocou meu ombro e, então, me disse:

          — Ainda bem que você desistiu da enfermagem, Maria Clara. A gente chora a perda de alguém todos os dias.

          Aquela mulher não tinha sido o primeiro ser humano que vi perecer. Entretanto, apesar de já terem se passado quase 30 anos, o som daquele suspiro ainda hoje me atormenta.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O dia em que fui trabalhar de Fusca" foi publicado por Notibras no dia 9/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-dia-em-que-fui-trabalhar-com-o-meu-fusca-e-dei-de-cara-com-um-acidente-grave/

domingo, 8 de junho de 2025

O fazedor de filhos

    

Otávio, 42 anos, solteirão convicto, gerente de lanchonete de afamada franquia num shopping em Brasília, tinha a imprudência de fazer filhos a torto e a direito. Oito, para ser preciso, cada um de uma mulher diferente. E, por conta de toda essa prole, precisava fazer infinitas horas extras para pagar tantas pensões alimentícias. 

        Com aquela penca de filhos, o sujeito era mote de brincadeiras por parte dos outros funcionários, a maioria com idades ao redor dos 18. Ele não gostava, mas também não era de dar chilique, ainda mais porque a tarefa de gerenciar tanta gente dava trabalho. Dessa forma, Otávio preferia absorver as piadas com um sorriso nos lábios, mesmo que a contragosto. 

        Durante a hora do almoço, o homem gostava de ficar acomodado em uma das inúmeras mesas da praça de alimentação. Antes de dar a primeira abocanhada, dava aquela olhada ao redor, como se estivesse avaliando os frequentadores. Aquela magrela, certamente, nem desconfia que o marido está de olho naquela de vestido colado. Ih, olha o jeito daquele ali. Até parece que ninguém sabe que está usando peruca. O que aquelas duas garotas estão pensando? Ah, já sei, estão apostando para ver qual irá ficar com o rapaz de jaqueta jeans. 

        Enquanto o gajo alimentava seu devaneio, eis que um menino de 11 anos se aproximou. Por uma dessas coincidências da vida, parecia com o gerente.  Os dois trocaram olhares, até que Otávio mostrou certa irritação com aquela situação.

          — O que foi, garoto?

          — Você é o meu pai.

          — Que teu pai o quê, moleque!? Nunca te vi mais gordo na vida!

          Em seguida, Otávio, desorientado, se levantou, deu as costas para o suposto herdeiro e sumiu de vista. Quanto ao menino, ficou ali parado até que três jovens, uma delas com um sorvete de casquinha na mão, às gargalhadas, foram até ele.

          — Toma aqui seu pagamento. Você foi ótimo.

          Assim que o menino pegou a casquinha, as garotas retornaram para a lanchonete, onde encontraram o gerente suando em bicas. Elas tentaram conter o riso por causa da brincadeira, ainda mais quando Otávio, olhos arregalados, disse:

          — Acho que vou precisar fazer mais horas extras.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O fazedor de filhos" foi publicado por Notibras no dia 8/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/otavio-se-surpreende-com-visita-meu-filho/