quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Hildebrando e a Ferrari

    

             Hildebrando, de tanto sucesso na profissão, não tinha tempo para coisas do coração. Era do trabalho para casa, da casa para o trabalho, sem falar das reuniões de última hora na multinacional. De tão dedicado, o homem era apontado por alguns como o mais forte candidato ao almejado posto de diretor da corporação. 

          Sorte no jogo dos negócios, Hildebrando, conduzindo seu Porsche, chegou à sua mansão de oito quartos. Estacionou na garagem ao lado de duas relíquias das mais tradicionais marcas italianas: Ferrari e Lamborghini. Desceu do veículo, caminhou até a enorme porta de madeira de lei e, antes de entrar, olhou para o lado e sorriu para a ampla piscina. 

          Já dentro de casa, admirou os quadros de artistas famosos nas paredes. Pensou em se servir um drink, mas lá estava Lúcio, o mordomo, com um copo de whisky do mais puro malte escocês sobre a bandeja de prata. Agradeceu e deu dois goles, um breve, outro profundo. Em seguida, subiu as escadas até a suíte principal, onde repousou o copo sobre a cabeceira.

          Em frente ao espelho do banheiro, encarou o reflexo e sentiu saudade de se apaixonar. Tentou puxar pela memória o gosto dos lábios da última namorada, mas mal se recordava do seu nome. Lúcia? Ou seria Jane? Pensou por mais alguns instantes, até que teve certeza de que era mesmo Lúcia. Jogou um pouco de água fresca no rosto, enxugou com a felpuda toalha.

          Hildebrando, antes de decidir tomar banho, bebericou o resto de whisky. Retirou a roupa e a despejou no cesto de vime. A ducha forte tocou-lhe as costas como um gesto agradável diante de mais um dia voltado apenas à labuta. Levou mais tempo do que de costume, até que, quase meia hora após, estava deitado. Cerrou as pálpebras e, num impulso, levantou o tronco. Mariana! 

          Mariana havia sido a última mulher que se deitou ao lado de Hildebrando. Como pôde esquecê-la? Por que mesmo se separaram? Adormeceu antes de se lembrar de que a namorada havia se apaixonado por um francês e, não tardou, foi com ele para Paris. 

          Hildebrando despertou bem mais tarde do que de costume. Olhou o relógio e já passava das 11h. Tudo bem, era sábado e não precisaria ir trabalhar. Na verdade, ele havia se comprometido a analisar alguns documentos naquele final de semana, mas era algo que não levaria mais do que duas ou três horas. Decidido, preferiu deixar a tarefa para o dia seguinte.

          Como já era tarde demais para o café da manhã e muito cedo para o almoço, o sujeito decidiu fazer um lanche na rua. Tal costume, assim como relacionamentos amorosos, não era algo comum. Seja como for, não tardou, Hildebrando, cabelos ao vento, dirigia a Ferrari pelas ruas da cidade, quando reparou certa aglomeração em uma padaria na Asa Norte. Ali deveriam servir algo do seu gosto ou, então, poderia. ao menos, parar para tomar um suco. 

          O contraste entre os outros carros estacionados e a Ferrari logo chamou a atenção das pessoas. Mesmo em Brasília, não é todo dia que se vê um automóvel tão luxuoso, ainda mais estacionado em frente a uma padaria, digamos, popular. Hildebrando fingiu naturalidade, apesar do ego inflado que fez seu coração bater a 300 quilômetros por hora. 

          Diante do balcão, Hildebrando pareceu não gostar do que viu. No entanto, pediu uma coxinha e um refrigerante. Não porque desejasse aquilo, mas porque percebeu o olhar de uma linda mulher ao lado. Era nítido o interesse dela, não necessariamente por ele, mais provável que fosse por conta da sua situação de, vá lá, homem com situação financeira estável. Que fosse, mesmo porque era sábado, e não fazia qualquer sentido o sujeito fazer juízo de valores. 

          No minuto seguinte, lá estava o casal de última hora sentado a uma das inúmeras mesas do local. Sorrisos para cá, sorrisos para lá, a timidez parece ter sido abandonada no balcão, tanto é que Hildebrando, talvez por conta da Ferrari, se sentiu suficientemente encorajado para pousar sua mão esquerda sobre a direita da beldade, que pareceu aceitar de bom grado a investida. 

           Da padaria, foram dar um passeio pela orla do Lago Paranoá. Hildebrando estacionou o veículo na Ermida Dom Bosco. Shirley, este era o nome da gata, não se fez de rogada e tascou um ardente beijo nos lábios do homem, que fingiu surpresa. E, o que parecia ser apenas um encontro de uma tarde na capital federal, se transformou em relacionamento sério.

          Hildebrando há muito não se sentia tão apaixonado e, a princípio, não se incomodou com certas interferências da namorada. O problema foi que ela não se contentou apenas em fazer com que o gajo se vestisse de maneira mais sóbria ou que parasse de falar tanto palavrão. Ele até tentava fazer tudo para agradá-la. Mas eis que ele percebeu que Shirley começou a exagerar na questão religiosa.

          — Hildebrando, meu amor, você precisa se dedicar mais seu tempo a Deus.

          — Como assim?

          — Pra que tanta ostentação? Você deveria doar esses carros exorbitantes para igreja.

          — Como assim? Deus por acaso tirou a carteira de motorista?

          A piada pronta parece que não surtiu o efeito desejado. Tanto é que Shirley evitou o toque do sujeito por quase uma semana. Na verdade, ele até começou a pensar que poderia doar ao menos um dos veículos para igreja, quando, então, a mulher veio com mais uma das suas ideias.

          — Hildebrando, andei pensando em uma coisa.

          — Diga, minha flor.

          — Não gosto do serviço desse seu mordomo.

          — O Lúcio?

          — É. 

          — Como assim? 

          — Andei conversando com Deus, e Ele me disse para falar para você contratar o Aloísio no lugar dele.

          — O seu colega da igreja?

          — Sim, o próprio.

          Não se sabe como essa conversa terminou, mas o Lúcio não perdeu o emprego de mordomo da luxuosa mansão no Lago Sul. Quanto ao romance, parece que terminou naquele mesmo dia, pois Shirley voltou a ser vista na mesma padaria. Já o Hildebrando comprou um Fusca 1972 e tem mantido seus carrões devidamente estacionados na garagem. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Hildebrando e a Ferrari" foi publicado por Notibras no dia 8/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/empresario-de-sucesso-da-chega-pra-la-em-namorada-que-so-falava-em-religiao/

2 comentários:

  1. Shirley queria era um amante , Hildebrando foi esperto não dispensando Lúcio. Adorei

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