A última festa que participei foi na casa de uma amiga, a
Leila. Quero deixar bem claro que somos amigas há tanto tempo, que não me
lembro do tempo em que, na minha vida, não existia a Leila. Se me fiz presente
foi por nosso longo histórico de amizade, sem contar que ela é especialista em
quitutes deliciosos e pouco calóricos.
Aniversário do Toni, namorado da Leila. Um tipo bonitão, mas não vale a blusa
colada naquele tórax de fazer qualquer uma perder a cabeça. Ele já se insinuou
para mim duas ou três vezes. Obviamente que me fingi de sonsa, pois não sou de
furar o olho da melhor amiga.
Também estavam na festa o Orlando, a Nice,
a Joana, o Augusto e a Solange, que veio com o noivo. Luciano é o nome do
sujeito. Não sei o que a Solange viu no tipo, ainda mais porque é da mesma
estirpe do Toni, isto é, gosta de dar em cima de qualquer uma. Não que eu seja
qualquer uma, mas aconteceu uma vez. Também, quem mandou a Solange ser uma
chata? Mas não estou aqui para falar sobre as fraquezas alheias, muito
menos expor minha vida amorosa, especialmente para você, que estou conhecendo
agora.
Lá pela segunda metade da festa, quando
costumo inventar uma desculpa qualquer para ir embora, a Solange, justamente
ela, instigou os presentes com uma conversa paralela.
— Por falar nisso, Leila, depois vou te
contar uma história engraçada de um tio meu que morreu e, apesar de morto,
continuou aprontando.
Gente, pra que aquela desorientada foi
falar uma coisa dessas? Eu, que tenho pavor desse lance do além, travei a
mandíbula de uma forma, que tive dificuldade até de mastigar as delícias sobre
a mesa.
— Como assim, mulher? Pois trate de me contar agora mesmo! Tenho
certeza de que todo mundo aqui ficou curioso?
— Por favor, Leila, me inclua fora
desse todo mundo. Prefiro enfrentar um rinoceronte faminto a me deparar com uma
alma penada.
— Deixa
disso, Raquel! Além do mais, até onde sei, rinoceronte é herbívoro.
Pois é, dei mancada quanto ao rinoceronte, mas
poderia muito bem dizer que foi por conta do nervosismo. Como sou adulta,
tratei de fechar a matraca e concordar com a anfitriã. Que a Solange soltasse a
língua, enquanto eu iria tomar coragem para escutar a tal história de assombração.
—Tio Norberto sempre foi mulherengo. Tia Judith,
coitada, não gostava de expor a família e, então, vivia acobertando as traições
do marido.
— Que
safado!
— É
verdade, Leila. Titio não era fácil e, depois que bateu as botas, continuou
atazanando a vida de todos que, de alguma forma, pulam fora da cerca.
— Como
assim? Não entendi.
—
Calma, Raquel, que já, já explico.
— Hum...
— Meu
tio, que faleceu no dia 25 de abril, que é uma data emblemática dos traídos lá
pelos lados de Portugal e Espanha...
— O
quê? Isso é sério?
—
Raquel, desse jeito, a Solange não termina a história.
—
Desculpe, Joana. Não falo mais nada.
— Hum!
—
Pois bem, tio Norberto morreu justamente nesse dia e, por algo que ainda não
descobri, ele parece ser um fantasma que gosta de falar com os vivos sobre
traições.
— Ah, que bobagem!
— Raquel, você vai deixar ou não a Solange contar a história?
— Ah, Nice, vocês acreditam mesmo nessa bobagem?
— Pois eu posso provar pra você, dona Raquel.
— Pois prove, dona Solange!
Nossa! Pra que inventei de confrontar justamente a Solange? Mas
fazer o quê? A asneira já estava na mesa e, então, a minha quase inimiga veio
com uma história mais esdrúxula do que ir de fraque para praia. Fraque para
praia? Gente, de onde tirei isso?
— Leila, você pode me arrumar um copo?
— Peraí, Solange, você não acha que já estamos crescidinhos pra
brincar do jogo do copo?
— Raquel, por favor! Vamos ver o que a Solange tem pra falar.
— Se você, que é a dona da casa, permite isso, tudo bem.
— Leila, também vou precisar de uma moeda.
— Aqui está.
— Obrigada, meu amor.
O circo estava armado. Solange, copo e uma mísera moeda de
cinco centavos nas mãos, olhos fechados, começou a invocar o tal tio Norberto.
Incrédula, percebi que as pessoas estavam atentas àquela palhaçada. A mulher
meteu a moeda no copo e ficou dançando que nem doida.
— Tio Norberto, tio Norberto, eis aqui sua sobrinha Solange,
filha de sua irmã mais nova, Francineide. Peço ao senhor, tio Norberto, que me
diga se aqui entre nós há adúlteros. Se houver, que dê cara.
Nisso, a maluca virou o copo. Todos olharam
para a moeda, que deu cara. Solange pegou a moeda, colocou no copo e fez o
mesmo processo. A segunda pergunta foi se os adúlteros haviam traído com alguém
que também estava ali. Novamente, deu cara.
As perguntas se seguiram, e apontava para cada um dos presentes.
— O Orlando é adúltero?
Cara.
— A Nice é adúltera?
Cara.
— O Augusto é adúltero?
Cara.
No final das contas, só restou o Luciano e eu.
— O Luciano é adúltero?
Cara.
Depois de jogar a moeda para quase todos ali, ainda faltava a
minha vez. Até então, aquele povo todo era adúltero. Mesmo assim, eu ainda
estava nervosa, quando, então, Solange jogou pela última vez a moeda.
— A Raquel é adúltera?
Coroa.
Devo ter feito cara de espanto, pois fui prontamente
questionada pela vidente de última hora.
— O que foi, Raquel? Será que tio Norberto
errou com você?
— Comigo? De jeito nenhum, amiga! Mas tenho certeza de que acertou
com você.
Depois do que eu disse, o tempo fechou.
Solange partiu pra cima de mim que nem onça brava, mas, por sorte, foi contida
pelo namorado. Tratei de ir embora antes que a coisa piorasse, mas não antes de
colocar alguns quitutes na bolsa.
Dias depois, durante uma pausa para recuperar o fôlego, o
Luciano me confidenciou.
— Raquel, meu amor, não é possível que você não tenha
desconfiado daquela brincadeira da Solange.
— Como assim?
— Ela estava usando duas moedas. A primeira tinha duas caras; a
segunda, duas coroas.
Gente, como fui tola! Cheguei a acender uma vela para
agradecer o fantasma do tio Norberto.
- Nota de esclarecimento: O conto "O fantasma do tio Norberto" foi publicado por Notibras no dia 27/1/2025.
- https://www.notibras.com/site/o-fantasma-do-tio-norberto-complica-a-vida-dos-outros-com-moedas-viciadas/
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