terça-feira, 28 de janeiro de 2025

O mistério das pedras

   

  Pode ser que uma coisa ou outra não tenha acontecido exatamente assim. Já passei dos 90 anos e, por isso, é compreensível que me esqueça de algo ou, então, troque fatos por devaneios. Mesmo assim, posso quase garantir que tudo se deu assim ou, talvez, não passou de um pesadelo que uma então menina de nove anos presenciou nos idos de 1940, bem aqui nesta casa onde ainda me encontro, em Luziânia, região próxima ao Distrito Federal.

          Não sei se é do seu conhecimento que povo de cidade pequena, geralmente, é religioso e teme qualquer coisa que remeta a pensar que é algo do Coisa Ruim. Repare que faço questão de grafar tal nome com maiúscula, já que, até onde sei, a sua existência nunca foi contestada por gente temente a Deus. 

          Manoel Barbosa de Oliveira, patriarca da família mais abastada da cidade, era rigoroso em relação às tradições. Respeitado na região, rivalizava com padre Alfredo em autoridade. E, apesar de possíveis pendengas que pudessem existir por conta de vaidades, não havia uma sequer, ainda mais por conta da religiosidade exacerbada do chefe do casarão localizado na praça da Matriz. Sem mencionar o respeitoso vínculo entre os dois homens.

          Padre Alfredo residia na igreja, que ficava ao lado da residência do senhor Manoel. Cidade pequena, o vigário conhecia cada família, mesmo os miúdos. Tamanha proximidade, no entanto, não poderia ser vista como sinal de liberdade para se aproximar do religioso, que, não raro, dava carão nos fiéis, inclusive naqueles que carregavam mais idade.

          — Dona Cremilda, estou sentindo a sua falta na missa. Temo que a senhora tenha abandonado a sua fé.

          — Desculpe pela ausência, padre Alfredo. É que meu Antônio anda acamado.

          — Já chamou o médico?

          — Ainda não.

          — Pois trate de chamá-lo.

           — Vou fazer isso agora mesmo, padre Alfredo.

          — Hum! Mas não se esqueça de levar o seu marido na missa de domingo. Afinal, do que adianta ter o corpo são, quando a alma está perdida?

          Seu Manoel também sabia se fazer rigoroso com os seus. Não admitia atrasos na hora das refeições. E que todos estivessem devidamente sentados nos respectivos lugares. E nada de distrações no horário de comer, pois, segundo o dono da residência, o cérebro precisava se concentrar para mandar mensagem para o estômago fazer a digestão. Ninguém ousava duvidar, nem mesmo Joaquim, o primogênito, que era estudante de medicina no Rio de Janeiro, então capital do país.

          Com o patriarca sentado à cabeceira, lá estava toda a família, degustando um delicioso guisado de carne, quando algo inesperado aconteceu. Uma pedra. Pois é, uma pedra, não se sabe de onde, caiu justamente no prato do seu Manoel, que ficou com a fina camisa de linho suja pelos respingos. O que era aquilo? Uma afronta, certamente!

          Joaquim, esperto como ele só, correu para a janela e tentou descobrir quem era o autor daquele vitupério. Olhou de um lado, olhou para o outro, fitou o horizonte e nada. Nem sinal do atroz indivíduo. 

          Diante daquela situação, seu Manoel e dona Eulália, a esposa, perderam a fome. Quanto à prole, foi quase obrigada a continuar sentados e terminar o almoço. Não seria um gesto de um facínora que impediria que os filhos do casal se alimentassem dignamente. 

         Seu Manoel, no decorrer da tarde, foi ter um dedo de prosa com o delegado. Aquele evento, mesmo que fosse fortuito, não poderia ficar impune. Que o responsável fosse arrancado de sua toca e exemplarmente punido. Onde já se viu interromper momento tão sagrado como a refeição em família?

          — Seu Manoel, o senhor pode ficar tranquilo, que iremos descobrir o sacripanta. E o bandido terá tratamento especial. Deixe comigo, que a polícia será impiedosa com o malfeitor.

           — É o que espero, delegado Alvarenga. É o que espero!

          Os dias seguintes foram calmos e sem qualquer pista do criminoso. Tudo parecia em paz até que, quase uma semana após, durante o jantar, de repente, outra pedra caiu no prato do seu Manoel. Joaquim correu até a janela, mas não viu sequer uma alma viva. 

          Seu Manoel, àquela hora da noite, mandou chamar o delegado. O sujeito ouviu horrores e, mais uma vez, prometeu que a polícia iria pegar o delinquente o mais rápido possível.

          — Que seja amanhã mesmo, delegado Alvarenga!

          — Pode ficar tranquilo, seu Manoel. De amanhã, não passa.

          Como já era esperado, a polícia não prendeu o salafrário no dia seguinte. Sem mais ter a quem recorrer, seu Manoel foi ter uma conversa com seu vizinho. Contou-lhe sobre os dois eventos, enquanto o religioso ouviu atentamente.

          — Padre Alfredo, não sei mais a quem recorrer. 

          — Seu Manoel, antes das refeições, reze dez pais-nossos e cinco ave-marias. 

          Após escutar o sacerdote, seu Manoel logo colocou em prática seus conselhos. Entretanto, de nada adiantaram as rezas, pois, novamente, uma pedra caiu no prato do patriarca. Enfurecido, o homem pensou em reclamar com padre Alfredo, mas, antes de colocar o pé na igreja, conseguiu controlar seus ânimos e, usando a razão, convidou o religioso para almoçar no dia seguinte. 

          Não era possível que, com o representante da igreja sentado à mesa, aqueles eventos voltassem a acontecer. Entretanto, como garantia, padre Alfredo rezou 20 pais-nossos e 20 ave-marias antes que todos à mesa dessem a primeira garfada no delicioso pernil assado. 

          A princípio ressabiados, os familiares começaram a se sentir confiantes, até que todos começaram a levar generosas porções às bocas famintas. Seu Manoel, que não gostava de falatório à mesa, enalteceu a presença do ilustre convidado.

          — Padre Alfredo, muito obrigado por livrar minha família desse ser maligno.

          — Seu Manoel, sou mero instrumento do Nosso Senhor Jesus Cristo. 

          — É verdade, padre Alfredo. É verdade!

          — Ninguém pode com Ele. Ninguém!

          — Ninguém, padre Alfredo. Ninguém!

          Enquanto padre Alfredo e seu Manoel enalteciam o poder de Jesus Cristo, eis que duas pedras certeiras os atingiram bem na testa. Só me lembro das cabeças do homem de Deus e do meu pai tombarem sobre seus pratos vazios. Os corpos dos cidadãos mais ilustres daquele tempo permaneceram inertes, enquanto o sangue escorreu sobre a mesa. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O mistério das pedras" foi publicado por Notibras no dia 28/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/misterio-das-pedras-que-mataram-padre-e-fazendeiro-continua-sem-solucao/

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