— O lugar mais lindo do mundo!
— E por acaso você conhece o mundo todo, Orestes?
— E por acaso preciso conhecer todas as mulheres do mundo pra
saber que você é a mais linda, Marinalva?
— Hum... Tá galanteador hoje, meu amor.
A despeito desse romantismo todo, o coração do homem não andava
bem das pernas. Vez ou outra, a dor no peito vinha sem avisar. Orestes era
levado às pressas para o hospital e, após o susto, voltava para casa dois ou
três dias depois. Tais episódios se tornaram mais frequentes, até que o sujeito
não retornou.
Antes mesmo do corpo do marido ser liberado pelo nosocômio,
Marinalva foi assediada por quase cinco funerárias. Quase porque, assim que o
funcionário da quinta apareceu, foi enxotado que nem cachorro. Que nem
cachorro, não, pois a mulher era deveras zelosa em relação a essas adoráveis
criaturas.
— Marinalva, por favor, daqui a pouco você
vai dizer que cães são que nem gente.
— Óbvio que não, Orestes! Cães são
confiáveis.
Após expulsar o último urubu que sombreava o
cadáver do Orestes, a mulher começou a pensar num jeito de transportar o
defunto para Sirinhaém. A distância nem era tanta, mas faltava dinheiro para
fazer o trajeto, ainda mais porque Marinalva havia raspado o último níquel do
cofre na compra do caixão.
O ataúde era muito grande para caber no Fusca. Se bem que, ela pensou,
poderia amarrá-lo na capota. Mas espaço não era o único problema, pois o motor
do automóvel já não dava no couro há tempos. Era melhor não arriscar ficar pelo
meio da estrada, ainda mais com o moribundo começando a feder.
Marinalva
pensou em pedir ajuda para o Alexandre, o vizinho. Ele possuía uma Kombi, mas
logo se atentou a um detalhe. É que os dois não se bicavam desde que haviam
discutido por conta de futebol. Marinalva, torcedora doente do Santa Cruz, não
suportou as provocações do vizinho fanático pelo Sport. Foi aquela saraivada de
palavrões, enquanto Orestes, que era Náutico sem grandes paixões, preferiu não
se meter.
Diante daquela sinuca de bico, eis que a viúva recebeu uma
proposta inesperada. Júlio, que morava no final da rua, soube do problema da
mulher e, não tardou, foi bater à sua porta.
— Mas isso não é loucura?
— Não sei por que seria, Marinalva.
— É que o Orestes sempre teve medo do mar.
— Se esse é o problema, tenho certeza de que ele não vai morrer
afogado.
— Você tem razão.
Júlio, afamado pescador, havia dito que levaria o caixão no
seu barco. Como o sujeito não possuía automóvel, pediu ajuda a outro vizinho, o
Laurentino. Este possuía uma carroça, que era puxada pela Filó, mula de maus
bofes, mas de força descomunal.
Antes da meia-noite, Laurentino estacionou a carroça em
frente à residência da Marinalva. Lá estava também o Júlio para ajudar a
colocar o caixão sobre a carroça. Os dois homens, cujos músculos eram talhados
diariamente nas respectivas profissões, ergueram o pesado féretro e o
depositaram cuidadosamente sobre a caçamba.
Após amarrarem o ataúde, Júlio e Laurentino, acompanhados da
Marinalva, subiram na carroça e seguiram para a praia, onde o barco do pescador
estava amarrado na areia. O trajeto foi quase silencioso, caso não fosse pelo
som provocado pelos cascos da Filó sobre o asfalto duro.
Assim que dobrou a esquina, já era possível avistar a
enseada. Mais algumas centenas de metros, Filó sentiu a areia, que abafou o
ruído das passadas, agora mais pesadas. Ao comando do Laurentino, a mula
estacou ao lado do barco, cujo nome, estampado na sua lateral, era Refrega.
Júlio saltou da carroça e, com uma das mãos, ajudou a mulher a descer.
Meia hora após, o barco, já com o caixão
no seu interior, foi arrastado até as águas, que estavam calmas. Marinalva e
Júlio se despediram do Laurentino, que não aceitou qualquer pagamento. O morto
havia sido seu amigo durante décadas.
Sem muitas ondas para serem vencidas, não tardou, o barulhento
motor a diesel foi transpondo a distância. Júlio, olhos para frente, vez ou
outra observava Marinalva com o rosto voltado para as luzes de Recife, que se
afastavam cada vez mais. O pescador calculou que a viagem não duraria mais do
que oito ou nove horas, dependendo da vontade da maré. Pobre infeliz, não contou
com a chuva, que começou a cair forte quando ainda restavam mais de 40
quilômetros para serem vencidos pelo bravo Refrega.
Júlio, nervos à flor da pele, tentava aparentar
calma, enquanto Marinalva, agarrada ao caixão, lamentava a maldita vontade do
marido de ser enterrado na terra natal. Quanto transtorno apenas para cumprir o
desejo do defunto. Perigava ela e Júlio serem arrestados para a morte. No
entanto, foi justamente quando tudo parecia estar perdido, que a natureza
resolveu, irônica como ela só, suspender a tormenta.
Abriu-se o céu, que deu passagem para os
raios da manhã. Marinalva agora chorava de alívio, enquanto Júlio, apesar de
uma furtiva lágrima no canto do olho esquerdo, se mantinha firme no timão. E,
pouco mais de uma hora, os aventureiros avistaram as areias da praia de Barra
de Sirinhaém.
Marinalva, eufórica, começou
a conversar com o marido, mesmo que ele fosse incapaz de respondê-la, enquanto
Júlio se sentiu aliviado por ter conseguido se manter firme diante do que ele
imaginou ser o fim da linha. Sentiu-se Odisseu e, exausto, sentou-se ao lado da
viúva. Por impulso, Marinalva beijou os lábios do herói, que, surpreso, recebeu
o prêmio mais do que merecido.
A distância foi vencida e, há
menos de duzentos metros da praia, eis que Refrega, ferido mortalmente pela
tempestade que enfrentou, começou a afundar. Assustada, Marinalva gritava,
enquanto Júlio, mais pragmático, puxou a mulher pela mão e, assim, os dois
pularam no mar.
Nadaram e, de vez em quando, olhavam para trás e viam Refrega
afundar até que o barco ficou totalmente submerso. Sem ter o que fazer, os dois
continuaram nadando e, finalmente, chegaram à praia. Exausto, tombaram na areia
e adormeceram.
Marinalva foi a primeira a despertar. Virou-se para o lado e, por
um instante, admirou o corpo de Júlio. Sentada, ela depositou o rosto sobre os
joelhos e chorou. O pescador logo acordou.
— Não chore, Marinalva. Estamos vivos.
— Como fui tola! Fiz você perder o seu barco.
— Quanto a isso, não se preocupe.
— E como é que não vou me preocupar, homem?
— Já faz tempo que quero largar essa vida de pescador.
— Deixa de bobagem, Júlio. Você sempre foi
apaixonado pelo mar.
— É verdade. Mas, ultimamente, ele tem me
deixado enjoado.
Os dois se entreolharam e, então, sorriram.
Depois, levantaram-se e, mãos dadas, foram procurar um jeito de retornarem para
Recife.
Quase uma semana após, o caixão, intacto, encalhou na mesma
praia. Orestes foi enterrado como indigente no Cemitério Municipal de
Sirinhaém. Mesmo assim, o seu último desejo foi realizado.
- Nota de esclarecimento: O conto "Odisseia pernambucana" foi publicado por Notibras no dia 28/1/2025.
- https://www.notibras.com/site/orestes-morto-enterrado-como-indigente-nao-viu-a-viuva-se-ajeitar-com-julio/
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