quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O jornalista e a colunista

    

Adamastor, que outrora trabalhara em um jornaleco pra lá de sanguinolento, conseguia guardar algumas manchetes. Isso apesar do Alzheimer, cada dia mais avançado. Por conta disso, os parcos amigos que cismavam em lutar contra os inevitáveis sete palmos, eram unânimes em afirmar categoricamente:

          — O Adamastor? Ah, aquele ali não tem histórias, mas catástrofes. 

          Diante de tamanha sina, o gajo nem tentava florear a crueza da existência. No entanto, caso alguém lhe dissesse que era pessimista, logo tratava de rebatê-lo.

          — Pessimista, não, meu amigo! Sou realista!

          — E onde fica o amor nisso tudo, Adamastor?

          — Amor? Que amor? A única vez que caí nessa ladainha foi pior do que tiro à queima-roupa.

          O homem não gostava nem de falar o nome da responsável pelo seu único momento de desatino em quase 80 anos de razão. Obviamente que ele ainda o guardava com aquele amargor de fel. Pois bem, a fulana se chamava Simone. 

          Pouca coisa além de um metro e cinquenta, cinquenta e cinco quilos sem muito esforço, a cútis de fazer inveja às outras mulheres, Simone escrevia uma coluna num jornal mais gabaritado, mas que pertencia ao mesmo grupo empresarial. Falava sobre os eventos da alta sociedade e, por isso mesmo, seria praticamente impossível seu caminho cruzar com o do Adamastor. Mas eis que o improvável aconteceu.

          Roberto Gusmão, industrial mais que endinheirado, vez ou outra, figurava como personagem da coluna de Simone. Isso até que, por um momento de ciúme, foi parar no texto do Adamastor. O motivo? Ah, o tal Gusmão, mulherengo dos mais afamados, não suportou descobrir que a esposa estava tendo um caso com o motorista. Foi tiro à queima-roupa.

          O assassino-viúvo, usando todo o seu poder, conseguiu se livrar da cadeia. Foi a julgamento, é verdade, mas a sociedade da época ficou ao seu lado. De algoz, passou a ser retratado como vítima de adultério. De tão absurda foi a atuação do advogado de defesa, que não seria de se admirar se o juiz tivesse mandado desenterrar a defunta apenas para que ela ouvisse a sentença: culpada!

                Por conta desse personagem que passou a figurar nos dois veículos de notícias, Simone e Adamastor se tornaram quase amigos, pois, antes que chegassem a esse nível, se viram apaixonados. O relacionamento se tornou tão intenso, que, não raro, ela trocava uma palavra ou outra nos escritos do namorado, enquanto ele dava pequenas pinceladas de sangue no texto da colunista. 

                Pela primeira vez na vida, Adamastor conseguia enxergar um princípio de arco-íris no céu sempre cinzento. E a coisa ficou tão séria, que ele pensou em pedir a mão da amada em casamento. Para você ver como a situação não estava para brincadeira. Todavia, eis que algo aconteceu.

                  Um bilhete. Um mísero e famigerado bilhete sobre a mesa de canto. Adamastor, ainda sonolento pela tórrida noite de amor, sentiu desconforto por causa da luz que entrava pela fresta da cortina. Tateou o outro lado da cama, mas não encontrou o corpo de Simone. Finalmente, abriu os olhos e se deparou com um pedaço de papel. Esticou o braço e o tomou para si.

                "Há momentos que precisam ser findados para se eternizarem.

                                                                                                      Simone"

                 Adamastor ficou arrasado, mas aceitou a despedida sem arroubos. Bebeu mais do que de costume por uma semana, até que retornou à dose dupla de uísque com duas pedras de gelo logo após entrar no módico apartamento. Dois ou três cigarros completavam o quadro e, por fim, tomava uma ducha antes de dormir. No dia seguinte, sabia que precisaria dar cor ao sangue que não parava de escorrer pelas ruas da cidade. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O jornalista e a colunista" foi publicado por Notibras no dia 1º/01/2025.
  • https://www.notibras.com/site/fim-de-breve-romance-vira-tomento-como-tragedia-no-noticiario-de-sangue/

2 comentários:

  1. Que pena que não tiveram um final feliz, essa Simone judiou.

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    1. Pois é, Luzia. A vida tem dessas coisas. Mas talvez a Simone tenha encarado a relação deles como algo passageiro. Quem pode saber? Muito obrigado por comentar!

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