Devia eu estar com uns oito anos, quando tive
a primeira grande perda. Foi tão desastrosa, que levei quase um ano imaginando
que a Cuca, minha vira-lata, fosse surgir de repente e me derrubaria com um
daqueles encontrões carinhosos que ela costumava dar. Não era por maldade.
Acredito que ela me percebia muito mais forte do que eu era ou, então, estava
me preparando para as trombadas que o mundo me daria ao longo da vida.
Essa ideia de que a morte é coisa definitiva
ainda não estava consolidada em minha mente. Devo lembrá-lo de que ainda era
uma criança, que imaginava a permanência da vida. Explico. Naquele tempo,
pensava, por exemplo, que vovó sempre havia sido velha, apesar das inúmeras
histórias que ela me contava dos seus tempos de menina. E, por mais que mamãe
me mostrasse fotografias minhas de quando eu havia acabado de nascer, não conseguia
me enxergar naquele bebê gorducho. Ainda mais eu, que, aos oito anos, era seca
que nem graveto.
Certo dia, que se deu logo após o óbito da
Cuca, chegou para uma visita a dona Maria de Fátima, que trouxe a tiracolo o marido,
seu Olavo. Minha mãe me pediu para ajudá-la a colocar xícaras na mesa da sala.
Foram servidos café e bolo de laranja. Peguei um pedaço e fui me sentar na
varanda, enquanto os adultos conversavam. Acabei me distraindo com uns
passarinhos, que me rodearam como se querendo um naco do que estava nas minhas
mãos pequeninas.
De pedaço em pedaço, o bolo se foi, até que o
casal se despediu. Morava a duas casas da gente. Dona Maria de Fátima, ao
passar por mim, percebeu meu semblante.
— O que houve,
Lucinha? Por que essa cara?
— A Cuca morreu.
— Ai, que dó! Ela era tão linda.
— Que linda que nada, meu bem. Aquilo era mais feio do que
batida de trem.
— Olavo!
— Ué, agora não se pode mais falar a verdade?
A mulher puxou o marido pelo braço e foi embora,
enquanto mamãe, ao meu lado, passava a mão esquerda nos meus cabelos aloirados,
como se querendo me consolar pela fala despropositada do sujeito. Isso me
remoeu por anos. Por que aquele sujeito precisava expor sua cretina opinião
para uma garotinha que estava sofrendo tanto?
Após quase dez anos da partida da Cuca, eis que chegou a vez
do velho Olavo. Na época, nem me preocupei em descobrir a causa da sua morte.
Certamente, foi devido a alguma doença de gente ruim.
O enterro aconteceu num domingo. A rua
inteira, já no dia anterior, parecia um velório, as pessoas lamentando a morte
do seu Olavo, como se ele fosse o ser mais puro do mundo. Na verdade, desde o
fatídico dia em que o crápula ofendeu a Cuca, nunca mais tive estômago para
olhar na sua cara repugnante.
— Lucinha, vamos!
— Mãe, vou ficar estudando. Tenho prova amanhã.
— Mas é o seu Olavo, minha filha.
— Outra hora vou visitar a dona Maria de Fátima, mãe.
— Tá bom! Mas deixe as
janelas fechadas pra não entrar mosca. Você sabe como odeio mosca.
— Tá bom, mãe.
Era mentira que eu tinha
prova na segunda-feira, ainda mais porque era final de semestre na faculdade, e
só estava faltando entregar um trabalho na sexta-feira. Depois, férias. No
entanto, naquele tempo, ainda não havia conseguido digerir a mágoa que sentia
por conta daquela fala completamente desumana dita por seu Olavo.
Quase cinco anos após o enterro, encontrei a
dona Maria de Fátima na padaria. Assim que me viu, ela me puxou pelo braço e
fomos lanchar na sua casa. Não me recordava de ter entrado ali. Nossa vizinha
fez questão de mostrar alguns álbuns de fotografias. E, entre tantos retratos,
um me chamou a atenção. Era o de um menino de aproximadamente sete, oito anos.
Ele tinha um belo sorriso e um cachorro de pelo arrepiado no colo.
— Quem é?
— Ah, esse é o Olavo.
— Seu Olavo?
— Sim.
— Não sabia que ele gostava
de cachorro.
— Ele adorava! Essa aí da
foto era a Paçoca.
— Paçoca?
— Sim.
— Que nome engraçado.
— É mesmo. O Olavo me disse
que a Paçoca foi a primeiro e último bicho que ele teve.
— E por quê?
— A mãe dele não gostava, dizia que dava muito trabalho. A
Paçoca morreu atropelada e o Olavo ficou doente. Febre alta. De vez em quando,
o Olavo me contava alguma travessura que ele e a Paçoca faziam. Creio que ele
nunca superou a perda da amiga.
A conversa se prolongou até o final da tarde. E, antes de eu
ir embora, a dona Maria de Fátima me deu um forte abraço.
— Lucinha, o Olavo chorou muito naquele dia.
— Que dia, dona Maria de Fátima?
— Quando a Cuca faleceu.
— Nunca soube disso.
— É que o Olavo era
meio fechado e jamais conseguiu digerir perdas. Até hoje me lembro das palavras
dele.
— E quais foram?
— Ele se virou para mim e, com os olhos cheios de
lágrimas, me falou: "Meu amor, pode parecer pretensão da minha parte, mas
sei exatamente o que a Lucinha está sentindo."
Já não sou mais aquela
menina, estou perto de completar 70 anos. Seu Olavo tinha razão, e ainda sinto
por não ter acompanhado seu enterro. A primeira fase da perda é extremamente
dolorosa. Com o tempo, temos a sensação de que a dor passou, mas ela continua
lá, só que camuflada.
- Nota de esclarecimento: O conto "Seu Olavo" foi publicado por Notibras no dia 15/2/2025.
- https://www.notibras.com/site/magoa-de-seu-olavo-passa-com-o-tempo-pois-no-fundo-ele-era-um-gentleman/
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