Àquela hora, a rua inteira ainda estava entregue aos braços de Morfeu, menos o papagaio e o poeta, que insistia em versos piegas e rimas banais. Este, aliás, talvez não tivesse noção da enorme falta de traquejo com as palavras ou, se tivesse, certamente culparia o parco tempo por conta da corrida vida de corretor de imóveis. Nisso, aliás, ele era dos melhores.
Afrânio Matos, 44 anos, tipo que poderia passar despercebido,
caso não fosse pelo vasto bigode que ajudava a esconder os dentes escurecidos
pelo consumo excessivo de café. É verdade que o sujeito havia fumado durante
quase vinte anos, mas o cigarro não fazia mais parte da sua rotina desde pouco
antes da conquista da Taça Libertadores da América do seu Fluminense. Diante da
promessa, ainda tentou recuar, mas não seria prudente ir contra os desígnios
dos deuses do futebol.
Aconteceu logo após a venda de uma luxuosa
mansão no Lago Sul, quando Afrânio recebeu uma polpuda comissão. Fez alguns
cálculos e teve certeza de que poderia sobreviver sem trabalhar durante pelo
menos seis meses, desde que reduzisse certas despesas. Nada de
confraternizações com os amigos ou viagens de última hora para visitar as
praias que só conhecia através de fotografias. Quanto aos restaurantes, faria
todas as refeições em casa ou, no máximo, compraria uma quentinha nos momentos
em que seu talento para culinária, que era quase nenhum, o abandonasse.
Decidido, abasteceu a geladeira e a despensa
com víveres e tratou de se dedicar à poesia. Levantava cedo, preparava café
suficiente para completar a generosa garrafa térmica, herança da avó. Em
seguida, sentava em frente ao computador e buscava inspiração na samambaia de
plástico pendurada no teto da sala.
"E se a samambaia possuísse flores?
Estaria eu subvertendo a vontade de Deus
ou da natureza?
Ou seria eu mero aprendiz da vida?
Vida vazia longe de tanta beleza da minha
Tereza."
Afrânio, não se sabe se por causa da primeira
estrofe escrita, se sentiu Dummond por um instante. Vá lá, ao menos Vinicius.
Sorveu o resto de café na xícara antes de voltar seus dedos impacientes para o
teclado.
"Tereza, Tereza, Tereza,
Eis que aqui estou.
Desejoso dos seus lábios nos meus,
Pois os meus são eternamente teus."
Não restava dúvida, segundo o poeta de última
hora, que aqueles versos entrariam para a história. Choveriam convites para
entrar na Academia Brasileira de Letras. Não que ele desejasse a morte de algum
imortal. Morte de algum imortal? Afrânio voltou a escrever para não perder
aquele momento de tamanha inspiração.
"Independentemente da morte,
Tereza,
Nosso amor é imortal.
Sabe por que sei disso?
Porque o bem sempre vence o mau."
Quanto mais as palavras se somavam, Afrânio
dava mais e mais goles no café. Não sentia mais fome, a não ser de despejar
todos seus sentimentos na tela. Nem dormir conseguia, apesar das flagrantes
olheiras.
Dona Maria das Dores, a diarista, encontrou o
patrão caído no chão da sala. A mulher tomou um susto, pois imaginou que ele
estivesse morto. Não estava. Mesmo assim, achou melhor chamar o porteiro para
ajudá-la a carregar o homem para a cama.
A ambulância chegou e levou Afrânio para o hospital. O gajo
passou dois dias ali, até ser liberado. Voltou para seu apartamento na Asa
Norte e buscou inspiração na samambaia. Esta, além de continuar sem flores como
qualquer outra pteridófita, não parecia disposta a transformar o homem em
poeta.
Afrânio, inquieto, andava de um lado para o
outro, até que percebeu que o dinheiro estava perto de acabar. Precisava voltar
ao trabalho. Entretanto, jurou que, assim que fechasse outra venda de imóvel,
retornaria para o que julgava ser o seu destino.
- Nota de esclarecimento: O conto "Afrânio se achava poeta" foi publicado por Notibras no dia 13/2/2025.
- https://www.notibras.com/site/afranio-o-corretor-que-se-achava-poeta-de-verdade/
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