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— Sabe, estou numa fase da
vida, que já não me importo por nada.
— Nada mesmo?
— É, talvez eu esteja
exagerando. Mas é que são tão poucas as coisas que me importam desde que deixei
minha mãe decidir meu destino por mim.
— Você diz em relação ao seu
casamento?
— Sim. Sabe, nunca amei o
Osvaldo. Não que ele não seja um homem atencioso, apesar da falta de amor que
sempre nos acompanhou.
— Ele não te ama?
— Não acredito que me
ame. Mas casais que estão juntos há tanto tempo são assim. Ou estou enganada?
— Mas e no início?
— O que tem?
— Ele deve ter te amado
no início. Afinal, ele se casou com você.
— Não. Você não tá
entendendo. Naquele tempo, as pessoas se casavam por casar. Chegava a hora, os
jovens eram empurrados para o altar pelos pais, talvez preocupados das filhas
ficarem para titia ou malfaladas.
— Tá, mas e os
homens?
— O que tem os
homens?
— Eles também eram
empurrados para o altar?
— Alguns, sim, mas
por outros motivos. A senhora sabe, naquele tempo o preconceito era ainda mais
forte do que hoje em dia.
— Tá, mas vocês
tiveram filhos.
— Doutora, até mesmo
os homens menos interessados podem procriar.
— Sei disso, mas...
— Não é o caso do
Osvaldo. No caso dele, é porque ele foi acostumado a receber ordens da mãe, das
irmãs. Sabe, ele é o caçula.
— Hum...Tá, mas e o
Júlio? Onde entra nessa história?
— Somos primos.
Mamãe era irmã da mãe dele. Crescemos juntos e, desde criança, ele sempre foi o
grande amor da minha vida. Mas a vida nos separou quando chegou o tempo dele
buscar emprego aqui em Brasília. Nessa época, morávamos em Catalão. A senhora
conhece Catalão?
— Fica em Goiás, né?
— Isso. É
divisa com Minas.
— Já
passei algumas vezes por ali indo para São Paulo.
— É caminho.
— Mas o Júlio e você tiveram algo antes dele
vim pra cá?
— Bem,
éramos primos...
— E?
— Bem, a senhora sabe, né?
— Não.
— A senhora nunca teve algo com um primo?
— Meus pais são filhos únicos.
— Que pena.
— Lucimara, não estamos aqui para falar sobre
a minha vida amorosa.
— Desculpe.
Após um instante de silêncio, a paciente
voltou a falar.
— Bem, o Júlio
e eu começamos um namoro pouco antes da vinda dele pra cá. Nada muito sério,
talvez, mas que, já naquela época, eu imaginava que seria para sempre. Ele não
voltou mais para Catalão. Enquanto isso, mamãe me disse que eu já estava
passando da hora de casar e, então, acabei no altar com o Osvaldo, que já
morava em Brasília. Por isso, vim pra cá em 1973. Formamos família, três
filhos, dois rapazes e uma moça.
— Então, você
era feliz, né?
— Feliz, feliz,
creio que não. Mães não têm tempo pra pensar em felicidade.
— Entendo.
— Quando as
crianças já estavam crescidas, reencontrei o Júlio e a Márcia no supermercado.
Márcia é a esposa do Júlio. Foi um choque pra mim. Não que eu tivesse esperança
de ter o Júlio de volta, mas não estava preparada para vê-lo com outra.
—E isso
foi quando?
— No dia 16 de agosto de 2022.
— Recente.
— Sim.
— Você tem boa memória.
— E como me esquecer da data do nosso
reencontro, doutora?
— É verdade.
— Pouco antes
do Natal daquele ano, exatamente no dia 19 de dezembro, Júlio e eu tivemos
nosso primeiro encontro. Foi mágico! Como dois jovens tentando recuperar todos
aqueles anos perdidos.
— E como estão as coisas hoje?
— Sabe... O Júlio é
o grande amor da minha vida. Não sei se sou o da vida dele. Suponho que sim. Às
vezes, penso também que isso é uma grande ilusão. Não sei. Há momentos em que
não sei se é verdade, ou se eu cultivei esse amor e ele não morreu apenas por
isso.
— Arrependida?
— Não, não!
Hoje penso de modo prático. Se ficasse sem ele hoje, não ia sentir muito. Ficar
sem ele, assim, se ele chegasse e dissesse que não queria mais... Entende?
— Sim. Será que você
se acostumou?
— Não sei. Esses dias, estava pensando que
voltei pra ele só pra provar que o teria de volta. Há momentos em que tenho
esses pensamentos. Mas o amo desde criança. Eu vivia dizendo que ia casar com
ele.
— Não se casou, mas estão juntos hoje em
dia.
— Mês que vem faz um ano e meio. Sabe...
Bem, é um amor limitado. A gente não tem liberdade. Somos só nós dois, entre
quatro paredes. Eu não posso gritar aos quatro cantos. Acho que isso limita
meus pensamentos também. É um amor limitado.
— Mas os relacionamentos não são iguais.
Olha você e o Osvaldo. Vocês são casados para o mundo, mas não dormem nem na
mesma cama. E não estou aqui te julgando, apenas reproduzindo o que você já me
disse na semana passada.
— E o Júlio também não dorme com a esposa
dele. Quer dizer, não se relaciona com ela. Entende, né?
— Sim.
—
Pois é, doutora... Nem nos meus piores pesadelos pensei que fosse casar com um
e viver com outro.
— Dois casais juntos-separados.
— Exatamente, doutora. Pois é, mas foi o
que falei pra senhora, não temos liberdade. E o Júlio fica querendo ir aqui
perto, como em Pirenópolis, Salto do Corumbá, Caldas Novas, mas nestes lugares
não falta gente conhecida. A senhora sabe, né? Brasília é um ovo.
— É verdade.
— Olha a fofoca que daria!
— Um fuzuê danado.
— Pois é, doutora. Mas eu não tenho
estrutura psicológica pra isso. Nunca tive.
— Lucimara, a nossa hora acabou. Te vejo
na semana que vem?
— Nossa, como o tempo voou! O Júlio já
deve estar me esperando lá embaixo. Ele conseguiu dar uma escapada do
trabalho.
Lucimara, já no
elevador, deu o último retoque na maquiagem, enquanto reproduzia mentalmente
seu mantra: "Vamos lá, garota! Um dia de cada vez, um dia de cada
vez!"
- Nota de esclarecimento: O conto "Dois casais juntos-separados" foi publicado por Notibras no dia 14/2/2025.
- https://www.notibras.com/site/amor-platonico-vira-real-e-surge-a-figura-dos-dois-casais-juntos-separados/
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