sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dois casais juntos-separados

   
        Lucimara, esposa do Osvaldo, viveu um amor platônico até há pouco em relação ao primo, Júlio. Até há pouco não porque deixou de amar o sujeito, mas porque deixou de ser fruto de desejo para se tornar realidade. Uma realidade, não raro, que chegava a doer, não por conta de culpa ou receio de ser descoberta. A questão era outra.

          — Sabe, estou numa fase da vida, que já não me importo por nada.

          — Nada mesmo?

          — É, talvez eu esteja exagerando. Mas é que são tão poucas as coisas que me importam desde que deixei minha mãe decidir meu destino por mim.

          — Você diz em relação ao seu casamento?

          — Sim. Sabe, nunca amei o Osvaldo. Não que ele não seja um homem atencioso, apesar da falta de amor que sempre nos acompanhou.

          — Ele não te ama?

          — Não acredito que me ame. Mas casais que estão juntos há tanto tempo são assim. Ou estou enganada?

          — Mas e no início?

          — O que tem?

          — Ele deve ter te amado no início. Afinal, ele se casou com você.

          — Não. Você não tá entendendo. Naquele tempo, as pessoas se casavam por casar. Chegava a hora, os jovens eram empurrados para o altar pelos pais, talvez preocupados das filhas ficarem para titia ou malfaladas. 

          — Tá, mas e os homens?

          — O que tem os homens?

          — Eles também eram empurrados para o altar?

          — Alguns, sim, mas por outros motivos. A senhora sabe, naquele tempo o preconceito era ainda mais forte do que hoje em dia. 

          — Tá, mas vocês tiveram filhos.

          — Doutora, até mesmo os homens menos interessados podem procriar.

          — Sei disso, mas...

          — Não é o caso do Osvaldo. No caso dele, é porque ele foi acostumado a receber ordens da mãe, das irmãs. Sabe, ele é o caçula.

          — Hum...Tá, mas e o Júlio? Onde entra nessa história?

          — Somos primos. Mamãe era irmã da mãe dele. Crescemos juntos e, desde criança, ele sempre foi o grande amor da minha vida. Mas a vida nos separou quando chegou o tempo dele buscar emprego aqui em Brasília. Nessa época, morávamos em Catalão. A senhora conhece Catalão?

          — Fica em Goiás, né?

          — Isso. É divisa com Minas.

          — Já passei algumas vezes por ali indo para São Paulo.

          — É caminho.

          — Mas o Júlio e você tiveram algo antes dele vim pra cá?

          — Bem, éramos primos...

          — E?

          — Bem, a senhora sabe, né?

          — Não. 

          — A senhora nunca teve algo com um primo?

          — Meus pais são filhos únicos.

          — Que pena. 

          — Lucimara, não estamos aqui para falar sobre a minha vida amorosa.

          — Desculpe.

           Após um instante de silêncio, a paciente voltou a falar.

          — Bem, o Júlio e eu começamos um namoro pouco antes da vinda dele pra cá. Nada muito sério, talvez, mas que, já naquela época, eu imaginava que seria para sempre. Ele não voltou mais para Catalão. Enquanto isso, mamãe me disse que eu já estava passando da hora de casar e, então, acabei no altar com o Osvaldo, que já morava em Brasília. Por isso, vim pra cá em 1973. Formamos família, três filhos, dois rapazes e uma moça.

          — Então, você era feliz, né?

          — Feliz, feliz, creio que não. Mães não têm tempo pra pensar em felicidade. 

          — Entendo.

          — Quando as crianças já estavam crescidas, reencontrei o Júlio e a Márcia no supermercado. Márcia é a esposa do Júlio. Foi um choque pra mim. Não que eu tivesse esperança de ter o Júlio de volta, mas não estava preparada para vê-lo com outra.

          —E isso foi quando?

           — No dia 16 de agosto de 2022.

           — Recente.

           — Sim. 

           — Você tem boa memória.

           — E como me esquecer da data do nosso reencontro, doutora?

           — É verdade.

          — Pouco antes do Natal daquele ano, exatamente no dia 19 de dezembro, Júlio e eu tivemos nosso primeiro encontro. Foi mágico! Como dois jovens tentando recuperar todos aqueles anos perdidos.

           — E como estão as coisas hoje?

          — Sabe... O Júlio é o grande amor da minha vida. Não sei se sou o da vida dele. Suponho que sim. Às vezes, penso também que isso é uma grande ilusão. Não sei. Há momentos em que não sei se é verdade, ou se eu cultivei esse amor e ele não morreu apenas por isso.

           — Arrependida?

          — Não, não! Hoje penso de modo prático. Se ficasse sem ele hoje, não ia sentir muito. Ficar sem ele, assim, se ele chegasse e dissesse que não queria mais... Entende?

          — Sim. Será que você se acostumou?

          — Não sei. Esses dias, estava pensando que voltei pra ele só pra provar que o teria de volta. Há momentos em que tenho esses pensamentos. Mas o amo desde criança. Eu vivia dizendo que ia casar com ele. 

           — Não se casou, mas estão juntos hoje em dia.

           — Mês que vem faz um ano e meio. Sabe... Bem, é um amor limitado. A gente não tem liberdade. Somos só nós dois, entre quatro paredes. Eu não posso gritar aos quatro cantos. Acho que isso limita meus pensamentos também. É um amor limitado. 

           — Mas os relacionamentos não são iguais. Olha você e o Osvaldo. Vocês são casados para o mundo, mas não dormem nem na mesma cama. E não estou aqui te julgando, apenas reproduzindo o que você já me disse na semana passada.

           — E o Júlio também não dorme com a esposa dele. Quer dizer, não se relaciona com ela. Entende, né?

           — Sim.

           — Pois é, doutora... Nem nos meus piores pesadelos pensei que fosse casar com um e viver com outro.

           — Dois casais juntos-separados.

           — Exatamente, doutora. Pois é, mas foi o que falei pra senhora, não temos liberdade. E o Júlio fica querendo ir aqui perto, como em Pirenópolis, Salto do Corumbá, Caldas Novas, mas nestes lugares não falta gente conhecida. A senhora sabe, né? Brasília é um ovo.

           — É verdade.

           — Olha a fofoca que daria!

           — Um fuzuê danado.

           — Pois é, doutora. Mas eu não tenho estrutura psicológica pra isso. Nunca tive. 

           — Lucimara, a nossa hora acabou. Te vejo na semana que vem?

           — Nossa, como o tempo voou! O Júlio já deve estar me esperando lá embaixo. Ele conseguiu dar uma escapada do trabalho. 

          Lucimara, já no elevador, deu o último retoque na maquiagem, enquanto reproduzia mentalmente seu mantra: "Vamos lá, garota! Um dia de cada vez, um dia de cada vez!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dois casais juntos-separados" foi publicado por Notibras no dia 14/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/amor-platonico-vira-real-e-surge-a-figura-dos-dois-casais-juntos-separados/

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