Comecei a minha vida profissional na contravenção, depois virei
padeira. Tinha carteira assinada, direitos trabalhistas, mas o salário era uma
miséria para modelar tanta farinha de trigo em formato de pães fofinhos por
dentro e crocantes por fora. Uma delícia, por sinal. E o cheiro, quem é que
resiste àquilo às seis horas da manhã?
Naquela época, conheci o Osvaldo, que era
confeiteiro de mão-cheia. Ele, apesar de não ser nenhum príncipe saído das
histórias da Disney, conseguiu me encantar com tanta doçura. Que homem! Pena
que não durou tanto, pois logo me apareceu o Márcio.
Um
traste! Lindo, é verdade, mas que não vale meia dúzia de pães dormidos. Mas não
adianta ficar aqui lamentando o encanto que me arrebatou naquele tempo.
Apaixonada que estava, entreguei meu corpo ao miserável. Quanto à alma, devo
tê-la ofertado ao Diabo em troca do vil metal.
Se me arrendo do que fiz? Pra que fingir
diante de tanta hipocrisia que me rodeia? Sejamos francos. Quem, em santa
consciência, não trocaria um amor verdadeiro, se é que ele realmente exista
mesmo, por uma vida regada ao luxo e, não raro, à própria luxúria? Se a
ganância faz parte do pacote? Não serei eu a afrontar a sua inteligência com
mentiras.
É óbvio que amo a vida que levo. No entanto, isso não é capaz de refutar
o ódio que sinto de mim mesma. Que sou uma crápula, não resta qualquer faísca
de dúvida. É o que sou e, portanto, sou obrigada a conviver com tamanha
pecha.
Ontem acordei disposta a fazer algo diferente. Recusei quatro ou cinco
convites para almoçar e um tanto para jantar. Dispensei Carlos, meu motorista
particular, do seu ofício por um dia. Que descansasse do trânsito e fosse
curtir a folga inesperada como quisesse. Quanto a mim, tomei a decisão de visitar
meu passado.
— Bom dia! Aqui ainda serve aquele
brigadeiro especial?
— Shirley! Há quanto tempo!
— Não sabia que você havia se tornado balconista, Osvaldo.
— Não soube?
— Do quê?
— Seu Ernesto faleceu.
— Nossa! Não sabia.
—
Pois é. Os filhos não quiseram tocar a padaria. Eu tinha um dinheirinho
guardado e, então, comprei o estabelecimento.
— Hum! Então, agora você é o patrão.
— De certo modo, é isso.
Enquanto degustava dois brigadeiros, muitas recordações passaram
pela minha mente. Já estava quase de saída, quando o Osvaldo me convidou para
almoçar. Se aceitei? Nem perguntei qual seria o cardápio, ainda mais diante
daquele sorriso lindo.
Osvaldo, apesar de
não possuir feições perfeitas, sempre cuidou muito bem dos dentes. Tem um leve
diastema nos dentes superiores, o que lhe confere certo ar de ingenuidade. Um
charme, como minha falecida avó costumava dizer.
Comemos um simples macarrão ao alho e óleo no pequeno apartamento,
que fica logo acima da padaria. É engraçado que há muito tempo não comia
tamanha iguaria da classe trabalhadora. Osvaldo preparou enquanto conversávamos
trivialidades.
— Shirley, desculpe por não
te oferecer algo mais condizente.
— Não se preocupe. Estou adorando! Esse
macarrão tá muito bom!
Poderíamos ter ido para cama, caso não fosse um resquício de dignidade
que percebi em mim. Não porque eu não quisesse, ainda mais depois de ser
tratada como uma rainha por aquele plebeu. E que plebeu! Entretanto, Osvaldo
não mereceria ser tratado como alguém descartável. Ele nunca foi desse tipo, e
eu admiro tamanha honestidade.
Antes de nos despedirmos, ainda tomamos
um picolé de frutas na padaria. Foi então que o meu ex-amor me perguntou como
era trabalhar como assessora na Câmara dos Deputados.
— Eita, lugarzinho pra ter gente que gosta de se aventurar a fazer coisa errada.
- Nota de esclarecimento: O conto "Nunca fui santa" foi publicado por Notibras no dia 6/2/2025.
- https://www.notibras.com/site/shirley-de-padeira-a-assessora-na-camara-admite-que-chegou-la-usando-a-cama/
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