— Mãe, esse lance de aquecimento global é invenção dos
comunistas. Sabe, vi um vídeo de um cara...
— Para, Luís Alberto! Por favor! Cale essa boca, que o povo não
vai ter mais dúvida de que você é mesmo burro.
Fui grossa? Tenho certeza de que não o suficiente, pois, caso
eu tivesse tomado uma atitude mais drástica, o mundo não precisaria mais
conviver com o ignóbil do meu filho. Gente, como isso me irrita! Ainda mais
quando olho para as estrias na minha barriga e tenho certeza de que elas estão
ali por uma causa perdida.
Viúva aos 64 anos, hoje perto de completar
70, conheci o Toni durante a posse do novo governante do país em 2023. Foi
paixão quase à primeira vista, caso não fosse por conta dos óculos de grau
defasados. Essas pequenas coisas que costumamos adiar até que, de repente,
tropeçamos em alguma pedra de Drummond ou, não raro, o nosso pé se afunda em um
buraco nas descuidadas calçadas de Brasília. Também, quem mandou morar em uma
cidade que foi projetada para automóveis? Besta sou eu que insisto em fazer
caminhadas por aqui.
Antônio Carlos, o Toni, me surgiu sem o
Jocáfi. Ih, se eu fosse tentar explicar essa brincadeira, os mais jovens não
entenderiam. Então, prossigamos, pois o tempo urge. Um tipão ou, como minha
saudosa irmã gostava de dizer, aquele pedaço de mau caminho que qualquer mulher
de bom gosto trata logo de se embrenhar. Pelo jeito, tenho cá meus refinamentos
e, por isso, mostrei de cara meu melhor sorriso, ainda mais porque fiz questão
de fazer aquela revisão caprichada no dentista na semana anterior ao
Natal.
Não sabia que o gajo era solteiro, mas
suspeitei, pois ele estava sozinho. Aliás, até tive uma ponta de dúvida, pois o
sujeito poderia ser a tal ovelha negra da família, tão cantada pela
inconfundível Rita Lee. Vá que o cara era o único que havia votado contra a
obscuridade.
É verdade que não estava completamente
enganada. O Toni, viúvo há mais tempo do que eu, morava no Rio de Janeiro.
Quanto ao resto da família, que consiste no filho, na nora e dois netos, teria
viajado para Miami, talvez na esperança de ficar por lá mesmo. Isso não
aconteceu, pois logo o visto de turista venceu e a trupe retornou para o
Brasil. Pior é que, contrários à vacinação, os abestados tiveram que tomá-la
para entrarem nos Estados Unidos. É pra rir ou pra chorar?
Após trocarmos algumas palavras enquanto
tomávamos picolé, percebemos que nossa química batia. E bateu mesmo, como
pudemos comprovar após aquela manhã ensolarada na capital. Por isso, a partir
de então, Toni e eu vivemos na ponte aérea entre Brasília e Rio. E foi numa
dessas viagens para Cidade Maravilhosa que conheci os membros da família do meu
amado.
Não foi algo que me animasse, como já previa.
É que o Toni já havia me alertado sobre seus parentes, que não são muito
diferentes dos meus. Fico pensando se não foi por causa de tanta cloroquina que
tomaram ou, então, se esqueceram das aulas de história. Ah, deixa isso pra lá!
Se o Toni e eu queremos morar juntos? Confesso
que até cogitamos tal ideia, mas logo desistimos. O motivo? Preferimos a
clandestinidade a compartilhar nossos momentos com tanta gente insana. Ademais,
ainda hoje guardo com carinho um dos últimos interlúdios que tive com mamãe.
— Adelaide, nunca se esqueça de uma coisa.
— E o que é, mamãe?
— Não existe maior pecado do que a burrice.
- Nota de esclarecimento: O conto "Flerte na multidão" foi publicado por Notibras no dia 22/2/2025.
- https://www.notibras.com/site/entre-clima-amor-e-terraplanismo-o-maior-pecado-e-a-burrice/