sábado, 22 de fevereiro de 2025

Flerte na multidão

    

           Sei que somos mais tolerantes em relação às falhas dos nossos filhos, muito mais até do que com as nossas. Também não estou aqui para passar a mão na cabeça da minha prole, que, vez ou outra, me faz ter certeza de que a humanidade está cada dia mais perto de se extinguir. O que os meus falam de bobagens não tem tamanho. 

          — Mãe, esse lance de aquecimento global é invenção dos comunistas. Sabe, vi um vídeo de um cara...

          — Para, Luís Alberto! Por favor! Cale essa boca, que o povo não vai ter mais dúvida de que você é mesmo burro. 

          Fui grossa? Tenho certeza de que não o suficiente, pois, caso eu tivesse tomado uma atitude mais drástica, o mundo não precisaria mais conviver com o ignóbil do meu filho. Gente, como isso me irrita! Ainda mais quando olho para as estrias na minha barriga e tenho certeza de que elas estão ali por uma causa perdida.

          Viúva aos 64 anos, hoje perto de completar 70, conheci o Toni durante a posse do novo governante do país em 2023. Foi paixão quase à primeira vista, caso não fosse por conta dos óculos de grau defasados. Essas pequenas coisas que costumamos adiar até que, de repente, tropeçamos em alguma pedra de Drummond ou, não raro, o nosso pé se afunda em um buraco nas descuidadas calçadas de Brasília. Também, quem mandou morar em uma cidade que foi projetada para automóveis? Besta sou eu que insisto em fazer caminhadas por aqui.

          Antônio Carlos, o Toni, me surgiu sem o Jocáfi. Ih, se eu fosse tentar explicar essa brincadeira, os mais jovens não entenderiam. Então, prossigamos, pois o tempo urge. Um tipão ou, como minha saudosa irmã gostava de dizer, aquele pedaço de mau caminho que qualquer mulher de bom gosto trata logo de se embrenhar. Pelo jeito, tenho cá meus refinamentos e, por isso, mostrei de cara meu melhor sorriso, ainda mais porque fiz questão de fazer aquela revisão caprichada no dentista na semana anterior ao Natal. 

          Não sabia que o gajo era solteiro, mas suspeitei, pois ele estava sozinho. Aliás, até tive uma ponta de dúvida, pois o sujeito poderia ser a tal ovelha negra da família, tão cantada pela inconfundível Rita Lee. Vá que o cara era o único que havia votado contra a obscuridade.

          É verdade que não estava completamente enganada. O Toni, viúvo há mais tempo do que eu, morava no Rio de Janeiro. Quanto ao resto da família, que consiste no filho, na nora e dois netos, teria viajado para Miami, talvez na esperança de ficar por lá mesmo. Isso não aconteceu, pois logo o visto de turista venceu e a trupe retornou para o Brasil. Pior é que, contrários à vacinação, os abestados tiveram que tomá-la para entrarem nos Estados Unidos. É pra rir ou pra chorar?

          Após trocarmos algumas palavras enquanto tomávamos picolé, percebemos que nossa química batia. E bateu mesmo, como pudemos comprovar após aquela manhã ensolarada na capital. Por isso, a partir de então, Toni e eu vivemos na ponte aérea entre Brasília e Rio. E foi numa dessas viagens para Cidade Maravilhosa que conheci os membros da família do meu amado. 

          Não foi algo que me animasse, como já previa. É que o Toni já havia me alertado sobre seus parentes, que não são muito diferentes dos meus. Fico pensando se não foi por causa de tanta cloroquina que tomaram ou, então, se esqueceram das aulas de história. Ah, deixa isso pra lá!

          Se o Toni e eu queremos morar juntos? Confesso que até cogitamos tal ideia, mas logo desistimos. O motivo? Preferimos a clandestinidade a compartilhar nossos momentos com tanta gente insana. Ademais, ainda hoje guardo com carinho um dos últimos interlúdios que tive com mamãe.

          — Adelaide, nunca se esqueça de uma coisa.

          — E o que é, mamãe?

          — Não existe maior pecado do que a burrice.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Flerte na multidão" foi publicado por Notibras no dia 22/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/entre-clima-amor-e-terraplanismo-o-maior-pecado-e-a-burrice/

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Do que você gosta?

Do que você gosta?

Poema por Antonio Carlos -Tatalo – Fernandes, Edna Domenica Merola, Eduardo Martínez, Gilberto Pinto da Motta, Léa Palmira e Silva- Azaleia, Rosilene Souza, Taís Palhares.



Gosto de um gostar

Que impregna o ar

Retórica artística confessa

 Rumo a pessoas,

Afetivamente.



Gosto de livros

De um jeito professoral

Que afaga a escrita

Sem iludir você

Definitivamente,

               Gosto.

                          (Edna Domenica Merola)



Gosto do cheiro da chuva

     em uma t(ar)de de verão.

Do folhe(ar) da imagin-ação

Do despert(ar) da cri-ação



Da ilusão do amanhã

        a seme(ar)realiz-ações



          Gosto

                      da melodia em moviment-ação

    a distribu(ir) ondul-ações.

                                           (Rosilene Souza)



Gosto do barulho do mar.

De ver o sol nascer e se deitar.

Gosto de ouvir pessoas,

De sorrir e as vezes chorar,

Estar entre amigos,

Conversar,

Ouvir música,

Dançar...

               (Tais Palhares)



Gosto de escutar

histórias, músicas

Gosto de rever amigos

De ler um bom livro,

De ser grata

 a Deus

 e aos meus ancestrais.

 (Léa Palmira e Silva - Azaleia)



Gosto de dormir com as galinhas e acordar com os galos.

Gosto de receber a Lua e o Sol a cada segundo.

Gosto de saber que tudo é finito, pois me dá a noção maior de tudo que  vivemos em paz.

Gosto também de quiabo, jaca e jiló.

E gosto de vocês.

(Gilberto Pinto da Motta)



Eu gosto do seu rosto ao vento exposto ao ar.

Seus olhos semicerrados lhe impingem um ar de seriedade.

Vejo na cena a respiração profunda e a tranquilidade.

Sem satisfações a dar.



Venho por trás e a abraço.

Afago seu dorso com meus lábios

e procuro pelo seu ponto focal no ar.

Lá está você respirando levemente.

Atinge as profundezas com leveza.

Sem satisfações a dar.

           (Antonio Carlos -Tatalo - Fernandes)



Hum... Gosto de praia,

de ler em frente à praia,

de tomar café,

de ler tomando café.

De ler sei que gosto, muito mais do que de tantas coisas.

Gosto de ouvir a Dona Irene lendo.

De vez em quando, me perco no doce timbre da sua voz.

Gosto de ler, de praia, de café, da voz da minha mulher...

Ah, também gosto de melancia e sorvete de morango.

                                                         (Eduardo Martínez)



Antonio Carlos (Tatalo) Fernandes, professor titular convidado da COPPE/UFRJ de engenharia naval e oceânica. Foi membro do GTP (Grupo Teatral Politécnico da USP). No Rio de Janeiro, fez curso de dança de salão com Jaime Aroxa e de declamador de poesia com Elisa Lucinda. Participa da Tertúlia Poética e do curso de Claudio Carvalho. Participa do livro publicado "Ninguém Escreve por Mim" organizado pelo último e editado por Cassiano Silveira.



Edna Domenica Merola

Paulistana, desenvolveu pesquisa sobre Psicodrama e suas aplicações em oficinas de escrita criativa, parcialmente publicadas em Aquecendo a produção na sala de aula (Nativa, 2001). É autora de A volta do Contador de Histórias (Nova Letra, 2011), No Ano do dragão ( Postmix, 2012), As Marias de San Gennaro (Insular, 2019), O Setênio (Tão Livros, 2024).



Eduardo Martínez

Carioca, bacharel em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. É autor de quatro livros (Despido de ilusões, Meu melhor amigo e eu, Raquel, e o recente Contos e crônicas por um autor muito velho); além de dezenas de coletâneas. Escreve diariamente para o site de notícias Notibras.



Gilberto Motta: paulista, circense, jornalista, professor-mestre e aprendiz da vida. Rodou mundos e hoje escreve em paz em um chalé na Guarda do Embaú SC.



Léa Palmira e Silva – Azaleia - é "manezinha" (nasceu na capital de SC). Em 2013, participou do concurso de Narrativas e Poesias do Sindprevs/SC e, em 2018, do Concurso Literário da Academia Criciumense de letras -ACL. Fez o curso de Contadores de Histórias no NETI- UFSC., em 2001, e posteriormente, as oficinas: Teatro da Terceira idade e Escrita Criativa. Foi integrante da ABCH de 2015 a 2023. E da ACONTHIF desde 2001. Participa do Projeto anti-racista Retintas 1 e 2 com poemas.



Rosilene Souza

Mineira, desenvolve pesquisa nas linguagens artísticas: colagem, escrita criativa, fotografia e deficiência visual. Investiga o excesso de imagens e escritas consumidas e produzidas na sociedade. Participa de exposições, feiras e mostras de Arte. Tem trabalhos artísticos e literários publicados em revistas, livros (coletâneas "Do corpo ao corpus, organização Edna Merola, 2022", "Ninguém escreve por mim, organização Claudio Carvalho, 2024"; catálogos e blogs. Contos e ilustrações publicados pelo Café Literário no Notibras (2025).



Taís Palhares

Paulistana, participou do Ateliê de Escrita da Biblioteca do CIC - Floripa, SC - em 2019. É leitora de ficção que sabe o que quer. Participou do Café Literário com os títulos: Daqueles tempos distantes como "Baby, eu sei que é assim" e "Do interior para a senzala da cidade... e um bebê do patrão".

  • Nota de esclarecimento: O poema "Do que você gosta?" foi publicado por Notibras no dia 21/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/quem-vive-sem-gostar-sabe-sabor-do-desgostar/ 

O velório de tia Brotinho

    

     Tia Brotinho, que não era pizza de verdade nem cocotinha de Copacabana ou Ipanema, mas adorava uma farra, teve uma vida sofrida e, por isso, precisou comer o pão que o Diabo amassou. A despeito de tamanha penúria, fazia questão de manter a categoria e dizia para os filhos:

       — Se o Diabo amassou ou não, isso é o de menos. O importante é que temos pão. 

          Por falar na prole da tia Brotinho, dos cinco filhos, nenhum presta. E não digo isso por despeito, mas porque conheço todos desde o tempo em que éramos miúdos. Tanto é que, mal a mulher morreu, os herdeiros correram para ver quem ficava com o cofre de barro em formato de porco, que titia guardava na cabeceira da cama.

          Mas deixemos de lado esses trastes, pois quero falar de algo mais interessante: o velório. Ainda mais porque tia Brotinho, em seu último ato, não poderia passar despercebida. Só que até eu, tão acostumada com os causos da minha parenta, seria incapaz de imaginar algo tão esdrúxulo como o que aconteceu.

          Lá estávamos todos comovidos com a repentina partida da minha tia, quando, sem avisar ou mesmo pedir licença, adentrou um doido na capela. O sujeito passou direto por todos e foi se agarrar ao caixão.

          — ELZAAAAAA! Que saudade! Por que você fez isso comigo?

          Ficamos surpresos, ainda mais porque tia Brotinho se chamava Maria de Fátima. Além do mais, o caixão não estava lacrado, o que permitia ter uma visão nítida do rosto da finada. Foi aí que me atendei sobre o fato de haver mais dois velórios nas capelas adjacentes.

          — Licença, creio que o senhor está enganado de velório.

          O homem me encarou de modo que percebi seus olhos avermelhados, uma mistura de emoção e algumas doses de destilados, que eram generosamente exaladas pelas narinas e boca. Em seguida, ele voltou a se debruçar sobre titia.

          — ELZAAAAAA!

          Sem mais ter o que dizer, tratei de me afastar. Vá que o cara fosse algum maluco. Por sorte, não demorou mais do que dois ou três minutos e, pasmem, foi-se embora da mesma forma que entrou. 

          Jonas, um dos imprestáveis herdeiros da defunta, aproveitou o instante para se aproximar. 

          — Que louco, né, Ana Paula?

          Preferi responder apenas com um sinal positivo de cabeça. Não estava querendo papo com meu primo, ainda mais porque ele sempre encabeçou a lista dos pilantras da família. Ih, não adiantou! Pois fique você sabendo que o cretino, ainda por cima, se insinuou para mim.

          — Sabe, Ana Paula, andei pensando... Sabe, a gente é primo, né? Então, você sabe, né? Primos costumam sair de vez em quando. Dizem que sempre rola aquela atração. Você sabe, né?

          Devo ter feito cara de surpresa, boquiaberta que fiquei ao ouvir aquela proposta indecente justamente em momento de tanta dor. Não disse palavra, o que, parece, foi entendido de forma equivocada pelo salafrário.

            — Então, a gente se fala depois, prima.

          Tratei de voltar meus pensamentos para tia Brotinho. Até me aproximei dela e mencionei bem perto do seu ouvido: "Titia, espero que você não tenha escutado isso."

          Quando a noite tomou conta do lugar, eis que o doido reapareceu do nada. A mesma ladainha, o tipo foi fazer aquele teatro agarrado ao caixão da tia Brotinho.

          — ELZAAAAAA! Por que você foi fazer isso comigo?

          Dessa vez, nem me dei ao trabalho de ir conversar com ele. Como titia sempre me disse, não adianta tentar convencer que o louco é louco. Então, preferi deixá-lo com sua loucura, mesmo porque tia Brotinho, espirituosa que sempre foi, certamente, estava se divertindo com aquele penetra sem-noção.

          O enterro se deu na manhã seguinte. O rapaz fez questão de fazer um discurso para a tal Elza. Para evitar pendengas, ninguém impediu o sujeito. Logo após a última pá de cal, o enlutado foi embora sem se despedir.

          Curiosa que fiquei, fui conversar com os parentes dos outros defuntos. Para minha surpresa, não havia qualquer Elza entre os mortos. Para piorar a situação, os falecidos eram do sexo masculino, sendo um velho e outro jovem de pouco mais de vinte anos. 

          Os meses seguintes transcorreram rotineiramente. É verdade que Jonas me chamou para sair duas ou três vezes, até que desistiu. O danado não vale o que pesa, apesar da aparência agradável. Mas tenho cá meus princípios, e tia Brotinho não merecia tamanha desfeita. 

          Quanto ao maluco do velório, pensei que jamais iria vê-lo até que, na semana passada, o encontrei de braços dados a uma velha, que andava com dificuldade, numa praça aqui na Asa Norte, em Brasília. O homem a ajudou a se sentar ao meu lado, enquanto foi comprar um picolé de um vendedor ambulante. Assim que retornou, ele fez questão de retirar o invólucro do picolé e o entregou à senhora.

          — Elza, cuidado pra não deixar cair. Quer que eu segure pra você?

          O homem retornou para pagar o vendedor. Enquanto isso, a mulher se virou para mim e sorriu. Retribuí com o meu melhor sorriso, enquanto ela pousou sua mão sobre a minha.

          — Sabe, minha filha, o Augusto sempre foi assim comigo.

          — Augusto?

          — É. Augusto é o meu neto mais próximo. 

          — Ah, ele é seu neto?

          — Sim. E você acredita que, não faz muito tempo, ele pensou que eu havia morrido?

         Tentei fazer cara de surpresa. Não sei se consegui convencer a minha mais nova amiga. Seja como for, ela me contou como se desenrolou o imbróglio e, talvez um dia, eu escreva sobre o assunto. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O velório de tia Brotinho" foi publicado por Notibras no dia 21/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/despedida-de-corpo-e-marcada-por-presenca-de-louco-e-cantada-de-primo/


A menina e o prato de pedreiro

   

          Cresci no interior. Não numa cidade pequena, mas na parte mais distante do centro de qualquer povoado, por menor que seja. Por isso, quando alguém me pergunta se o local onde nasci está no mapa, respondo que Deus, talvez propositalmente, deixou de incluí-lo. O mal-estar é instantâneo, como se eu fosse uma aberração. Mal sabem eles que eu, Maria das Dores dos Santos, carrego todas as dores comigo e jamais contei com a ajuda de qualquer santo. 

          Lembro-me bem da primeira vez que estive em São José do Brejo do Cruz, aqui na Paraíba. Foi pouco antes das regras me chegarem. Acompanhei meu pai, que foi vender a sobra da farinha de macaxeira. Ele tratou com um sujeito, dono de comércio, que pagou uma ninharia por tantas horas de trabalho de sol a sol, sem contar as léguas vencidas para chegar àquele lugar.

          Não sei se o homem, um tipo encorpado e suarento, ficou com dó ou, então, quis garantir que papai retornasse na próxima colheita. O certo é que nos convidou para almoçar. Arroz, feijão de corda e um tanto de farinha. Comida conhecida, mas em quantidade muito maior do que estava acostumada. 

          Devo ter arregalado meus grandes olhos castanhos, pois a cozinheira, talvez tocada por minha magreza, foi generosa. Encheu meu prato igual ao de papai. Mal me acostumei com o peso, andei com cautela de veado-catingueiro para não deixar nem farelo cair. 

          Sentada ao lado de papai num canto, trocamos olhares. Não me atrevi a tocar na comida até que ele me cutucou o ombro e me disse:

          — Pode comer, Maria. 

          Tratei de obedecer e comecei a levar aquela comida à boca, quando dois homens chegaram. O mais alto se virou para o menor, como se espantado pelo que viu. Em seguida, se dirigiu à cozinheira:

          — Raimunda, quero um prato de pedreiro que nem o daquela menina ali.

      Olhei para meu pai, que me mandou continuar comendo. Naquele tempo, ainda desconhecia o sentido das palavras daquele homem. No entanto, quando descobri, percebi que, talvez, ele não soubesse o real significado da fome.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A menina e o prato de pedreiro" foi publicado por Notibras no dia 21/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/a-menina-da-paraiba-e-o-seu-primeiro-o-prato-de-pedreiro/

Com esse sobrenome, só pode ser venezuelano

    

  "Com esse sobrenome de venezuelano, duvido que seja brasileiro, seu esquerdista." Não foi exatamente essa mensagem que me mandaram, pois tive que fazer algumas correções, haja vista o emissário, ao que tudo indica, não ser muito afeito à língua portuguesa.  Seja como for, não me dei ao trabalho de retrucar o dito cujo. Inclusive, irei aqui recorrer às sábias palavras do ilustre Professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB, proferidas durante a CPI do MST na Câmera dos Deputados.

    "Em respeito à deputada, porque, na verdade, ela não me fez pergunta nenhuma, né? Eu só queria dizer assim... Octavio Paz, em ‘O Labirinto da Solidão’, diz que quando (Cristóvão) Colombo chegou, (os indígenas) não viram as caravelas... Elas estavam ali fundeadas, mas não havia cognição para poder representar cerebralmente uma imagem que era absolutamente incompatível com o quadro mental de uma cultura que não tinha elementos para visualizar... Por isso que os gregos diziam que ‘teoria’ significa ‘aquele que vê’, o ‘teores’, é ‘aquele que vê’... A gente só vê o que tem cognição pra ver... Eu não tenho como discutir com a deputada porque a sua visão de mundo, a sua percepção como cosmovisão, só lhe permite enxergar o que a senhora já tem escrito na sua cognição... Então a senhora vai ver não é o que existe, mas é o que a senhora recorta da realidade... A realidade é recortada por um processo de cognitivo de historicização... Então, eu não posso discutir um tema que contrapõe visão de mundo, concepção de mundo, entendeu?”

      Nem sei se você que está me lendo se deu ao trabalho de, ao menos, passar os olhos sobre as 272 páginas da denúncia apresentada pelo Procurador-Geral da República Paulo Gonet, mas deveria. Se eu li? Sim, isso é óbvio, pois sou deveras curioso para saber o que os denunciados, segundo a denúncia, tramaram contra a DEMOCRACIA. 

        Por que escrevo com letras garrafais? Por que acredito que a DEMOCRACIA é a única forma de governo aceitável. Se é perfeita? Óbvio que não, mas é a única plausível numa sociedade sã. Vou aqui recorrer a alguém que, indiscutivelmente, é histórico personagem voltado à direita: Winston Churchill.

          "A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história."

            Não sei se você assistiu ao filme "Djando Livre", do Tarantino. É que percebo que o meu ofensor seria algo como Stephen, personagem vivido pelo excelente ator Samuel L. Jackson. Stephen é um homem escravizado, mas que defende com unhas e dentes os interesses de seu proprietário, Calvin Candle, encenado por Leonardo Di Caprio. 

        Não vou aqui me prolongar em análises sobre o assunto, mesmo porque não sou psicólogo, psiquiatra ou cientista político, e preciso escrever meus contos e crônicas, que são publicados diariamente na editoria Quadradinho em Foco, aqui no Notibras. Ah, quanto à referida suposição do sujeito, estou pensando seriamente em solicitar cidadania venezuelana. Talvez, meu sobrenome sirva como facilitador.

  • Nota de eesclarecimento: A crônica "Com esse sobrenome, só pode ser venezuelano" foi publicada por Notibras no dia 21/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/gado-analfabeto-e-burro-continua-apostando-em-um-mito-feito-de-barro/

         

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Amigas, mas nem tanto

    

       Juliana era a melhor amiga de Shirlei. Hum... Juliana era a única amiga de Shirlei. Creio que assim ficou mais condizente com a realidade, mesmo que tal relação esteja, aqui, retratada de maneira romantizada. Não que Juliana não gostasse de Shirlei, mas amizade, para mim, é algo que beira à nobreza. Melhor amiga, então, ih, nem pensar!

          O que quero dizer é que Shirlei não era o que se pode chamar de gente popular. Não era a mais bonita, não era a mais inteligente, não era a mais charmosa, não era a mais simpática nem a mais engraçada e, por fim, estava longe de ser a mais carismática. Para piorar a situação, possuía um olhar oblíquo, agravado por rugas no canto direito dos lábios, que lhe conferiam certo ar de descaso por qualquer vivente, com exceção de Juliana. 

          Juliana? Parece que a mulher reunia tudo o que faltava na amiga. Carisma, então, era o que mais lhe sobrava. Tanto é que era possível enxergá-lo fluindo por todos os poros da pele macia e agradável da garota, ainda mais quando ela era atingida pelos raios de sol. Tem gente que é assim, e Juliana pertencia à essa estirpe privilegiada. 

          Por um desses acasos que acontecem sempre, lá estava eu sentada à mesa ao lado das duas mulheres em uma cafeteria cheia de atrativos na ampla vitrine. Gulosa que sou, pedi uma empada de camarão, outra de palmito e um bombocado para acompanhar meu café coado com adoçante. Afinal, precisava me manter firme na dieta, já que o verão estava chegando, e eu havia feito plano de desfilar minha barriguinha sarada na Água Mineral, que fica no Parque Nacional aqui em Brasília. 

          Não sou do tipo que fica de butuca naquilo que não me diz respeito. Entretanto, graças a Deus, nasci com os ouvidos perfeitos e, por tal condição, foi impossível não escutar o singular interlúdio que se deu. Aliás, não apenas singular, como também deveras franco por parte da esplendorosa Juliana.

          — Ju, o que temos é tão lindo.

          — Hum...

          — Você não acha?

          — É.

          — Ju, posso te fazer uma pergunta?

          — Hum...

          — Posso?

          — Sim.

          — O que você pensa sobre mim?

          — Shirlei, por favor, não vamos estragar a nossa amizade.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amigas, mas nem tanto" foi publicado por Notibras no dia 20/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/confidencia-sobre-ser-coloca-amizade-em-risco/

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O primeiro leitor

 

         Agnaldo, tipo bonitão, cara de todos amigos, é o primeiro a ter contato com os meus escritos, cujas palavras faço questão de colocar em cadernos, apesar da insistência de minha mulher querer que eu passe a usar um computador.

          — Luiz, daqui a pouco, teremos que alugar uma sala para colocar tantos cadernos. 

          Exagero da minha amada, já que não são mais do que duas caixas grandes, que ficam guardadas na garagem da nossa casa. Além de não ocupar tanto espaço, é um passatempo para este velho. Além do mais, nosso carro é um Fusca, que mal sai do aconchego de uma quase aposentadoria. Nem sei por que ainda não o vendemos. Talvez por apego, talvez por preguiça, talvez até por coisa que ainda não quis pensar. 

          Não descarto a razão da minha esposa, ainda mais porque sou do tipo acostumado a obedecer. Fui criado por mulheres, apesar da presença de papai, figura quase apagada em relação aos ditames da casa. Gerente de banco que era, nunca deu pitaco assim que colocava os pés dentro do nosso lar. 

          Segui os passos de meu pai e, logo após completar 18 anos, ingressei no Banco do Brasil, onde fiz carreira até me aposentar. Durante todos aqueles anos, busquei na literatura refúgio, que certamente foi um dos pilares da minha sanidade mental. Li os clássicos e, não raro, comprava livros de colegas que se aventuravam na escrita. Confesso que não sou o melhor crítico sobre o assunto, mas consegui enxergar talentos incomuns em dois ou três, que me fizeram invejá-los e, não tardou, tive ímpeto de me tornar também aventureiro. 

          Comei com pequenos rabiscos, nenhum que valha o esforço de ser lido. No entanto, como pai zeloso que sempre procurei ser, os guardo como lembrança dos primeiros passos dos meus filhos, hoje todos criados e vivendo suas vidas. Nunca mais os li, apesar da promessa de fazê-lo assim que a coragem para tal me fizer uma visita, seja até mesmo para um café em hora inapropriada. É que praticamente todos esses momentos se foram depois que troquei o paletó por qualquer camisa folgada, calça de moletom e sandálias.

          Falei tanto, que acabei me esquecendo do Agnaldo, que chegou pelas mãos do meu filho. Este, como todos os homens da família, telefonaram antes para saber se poderia ou não trazer o dito cujo. Por acaso, eu quem atendi e, então, passei o telefone para a minha esposa. 

          Como já havia dito, o Agnaldo é bonitão, cara de todos amigos, não tem raça definida e, que nem muitos outros vira-latas, possui aquele jeitão de sambista carioca. 

          — Sambista carioca? De onde tirou isso, Luiz?

          É a Laura, minha esposa, que deu aquela esticada de olho nas minhas anotações. Assim que ela deu as costas, voltei a escrever. Peraí! Talvez minha mulher tenha razão. Dei aquela encarada no meu amigo, que, surpreendido, fez pose de altivo. Hum! Cauby! É isso, o Agnaldo tem a presença do Cauby Peixoto.

          — Cauby? Luiz, o Agnaldo tá mais pra cantor de cabaré.

          Laura, mais uma vez, tem razão, e o Agnaldo parece concordar, pois não para de abanar o rabo para ela. Se bem que minha amada acabou de lhe dar um petisco. Que cachorro vendido! Estou pensando em utilizar a mesma técnica quando eu for ler meus textos para o meu amigo. Quem sabe, assim, eu me anime para desencaixotá-los e mandá-los para o Café Literário do Notibras... Será que serão aceitos?

  • Nota de esclarecimento: O conto "O primeiro leitor" foi publicado por Notibras no dia 19/2/2025.
  • https://www.notibras.com/site/agnaldo-tipo-cantor-de-cabare-olha-as-letrinhas-ate-que-se-vende-a-petisco/