sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Gratidão roubada

          Monique, mal entrou na quitanda, voltou o rosto para trás. Nada! Nem sinal do rapaz. Aliviada, foi em direção à prateleira de laranja e selecionou meia dúzia. Tamanho nervosismo parece que não foi notado pelos outros fregueses, muito menos pelo do estabelecimento e o empregado, que estava atendendo uma senhora.

          — São só as laranjas?

          — Ah, sim!

          — Quatro e setenta.

          — Débito.

          A mulher, antes de sair da loja, olhouu para os dois lados, olhou adiante. O jovem havia mesmo desaparecido. Se contasse, ninguém acreditaria. Mesmo assim, foi o fez assim que chegou ao pequeno que dividia com Clarice.

          — Você não vai acreditar.

          — No quê?

          — Lembra que te falei de um cara que me ajudou na semana passada?

          — Hum... Não.

          — Clarice, você é mesmo uma cabeça-de-vento.

          — São os meus alunos que me tiram do sério.

          As duas riram.

          — Quer café?

          — Quero te contar o que aconteceu.

          — Tá. Tô ouvindo. Mas quer café?

          — Quero. Colocou açúcar?

          — Não, né! 

          — Ah, bom!

          — Tá, mas e a história?

          — Clarice, eu te falei, sim, do cara que me ajudou a trocar o pneu.

          — Ah, tá! 

          — Pois é, menina! Esse mesmo!

          — E o que tem ele?

          — Você acredita que ele me assaltou hoje?

          — Sério?

          — Sério!

          — Que coisa!

          — Pois é, Clarice! Assim que eu o encontrei, quis agradecê-lo, mas ele foi mais ligeiro. Levou minha carteira e parte da minha gratidão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gratidão roubada" foi publicado por Notibras no dia 31/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/editoria/quadradinho-em-foco/

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Santana e o facínora da peixeira

    

               Se havia um local onde o Santana odiava ficar era na delegacia. Pior mesmo só se precisasse ir para a rua combater o crime. No entanto, como poderia correr o risco de perder o emprego, não teve escolha e se juntou à equipe que foi atender a um chamado da população, que disse que um homem, munido de peixeira, estaria assaltando os transeuntes na Ceilândia, no Distrito Federal.

          Ricky Ricardo, Pedrito, Ana Luísa, o novato Felipe e o Santana entraram na viatura e rumaram para o local. Pedrito, que estava ao volante, acelerou, pois o facínora poderia escapar. Pra quê? O Santana, que estava prendendo os gases intestinais, os soltou aos montes, o que obrigou a Ana Luísa a tomar uma atitude radical: abriu o vidro e meteu a cara para fora a fim de buscar ar menos poluído. 

          — Pô, Santana, segura a onda aí!

          — Ricky, a culpa não foi minha. Foi do Pedrito, que parece que quer tirar o pai da forca.

          — O tempo urge, Santana!

          — Quem ruge é leão, Pedrito!

           — Eu disse urge, Santana. Urge!

            Graças à habilidade do Pedrito, os policiais conseguiram chegar a tempo de avistar o facínora. Este, assim que notou o grupo vindo em sua direção, tratou de dar o pinote. Ricky Ricardo orientou Felipe e Ana Luísa a entrarem na rua paralela, pois o gatuno poderia fugir para lá. Enquanto isso, ele e Pedrito correram atrás do bandido, que, desesperado, pulou o muro de uma das casas.

            — Ele entrou ali, Ricky!

            — Eu vi, Pedrito! Vamos lá, antes que ele escape.

            Para sorte dos policiais, o ladrão foi logo avistado atrás da casinha do cachorro, que não parava de latir. 

             — Parado aí! - ordenou Ricky.

             O homem, diante dos policiais, percebeu que não havia escapatória. Tratou de largar a peixeira e ergueu as mãos. Tudo parecia resolvido, quando surgiu a dona da residência, uma velha de seus quase 80 anos, que foi ver o motivo dos latidos do cachorro.

              — Ei, o que vocês estão fazendo no meu quintal?

              — Senhora, bom dia! Somos policiais e viemos prender esse homem, que invadiu a sua residência.

               Tudo parecia resolvido quando, então, surgiu o Santana, cujo preparo físico o havia abandonado há pelo menos duas décadas. Pistola na mão, sem qualquer motivo, efetuou dois disparos para o alto. Ricky Ricardo e Pedrito e até o cachorro olharam abismados para o policial. Foi o tempo do bandido pegar a peixeira e fugir para local incerto. 

                Como desgraça pouca é bobagem, eis que o Pedrito cutucou o braço do colega ao lado. A idosa, assustada com os tiros, havia caído durinha. Infarto fulminante do miocárdio. 

                — Ricky, parece que a senhora teve um treco.

                 O experiente policial, diante daquela confusão, precisou inventar uma história para, mais uma vez, salvar a pele do Santana. A tal história cobertura foi que estavam no encalço de um meliante nas proximidades, quando se depararam com uma pobre mulher caída no quintal da própria casa. Os impávidos policiais, então, preferiram deixar o suspeito fugir e foram tentar socorrê-la. Mas eis que, diante do destino de todos nós, nada puderam fazer a não ser acionar o rabecão. No final das contas, até receberam elogio formal do delegado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Santana e o facínora da peixeira" foi publicado por Notibras no dia 30/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/santana-volta-a-cena-contra-o-facinora-da-peixeira/

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Leopoldo, Boquinha e seu Alexandre

    

Leopoldo, proprietário da afamada oficina Magnu, é referência de causos vividos, contados, ouvidos e historiados, conforme um dos seus clientes, o Gilmarildo, gosta de propagar aos quatro ventos. Antes de começar a contar um dos causos que provocou alvoroço, vale a pena situar o leitor sobre como as coisas funcionam por lá. 

          O nome do estabelecimento surgiu como uma brincadeira do Leopoldo, que gosta de dizer que o sujeito entra na oficina magnata, mas sai nu. Não que os preços praticados sejam tão exorbitantes. O problema é outro, já que o Leopoldo, como todo bom mecânico, sempre encontra um defeito novo para prolongar a estadia do veículo no local. Lembrando que, apesar de raros, os atrasos ocorrerem com bastante frequência. Por isso, Leopoldo tem o providencial hábito de mudar os veículos de lugar para dar a impressão de que está trabalhando ininterruptamente. 

          Além de atrapalhado com os prazos, o mecânico gosta de dar uma de moralista para cima da freguesia mais exaltada.

          — Seu Jorge, quem tem um só carro não tem nenhum.

          Sem falar que Leopoldo também é famoso por viver endividado. No entanto, antes que alguém fale que ele não sabe controlar as próprias finanças, o sujeito mete essa:

          — Calixto, meu amigo, acumular dinheiro é coisa repugnante. Além do mais, caixão não tem gaveta, mortalha não tem bolso e só se vive uma vez.

          Além do cachorro Caneco, vira-lata da pior estirpe, que prefere fazer vista grossa a morder o calcanhar de qualquer possível gatuno, também trabalha no local o José Raimundo, vulgo Boquinha. Um tipo engraçado, não pelas piadas, mas por causa do mau humor, que ele afirma categoricamente ter herdado do avô.

          Por falar no Boquinha, lá estava o sujeito, marreta na mão, consertando um escapamento de uma camionete. Bate daqui, bate dali, o barulho tomou conta da oficina. Foi então que o Alexandre, cliente dos mais chatos, do alto dos seus 80 anos, começou a ficar irritado.

O velho, conhecendo o temperamento do mecânico, perguntou com a maior educação se ele poderia fazer menos barulho. Ih, não adiantou, pois não apenas o seu Alexandre, mas todos ali ouviram o desaforo do Boquinha.

          — Ô, seu Alexandre, se quiser ouvir sussurros e gemidos, procure a casa da luz vermelha, pois aqui é oficina e tem barulho, sim!

          Silêncio total, pois as testemunhas ficaram tensas esperando a reação do coroa. Foi aí que o seu Alexandre começou a gargalhar, e todos, aliviados, desandaram a rir, ainda mais quando perceberam que a prótese dentária do octogenário começou a sair do lugar.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Leopoldo, Boquinha e seu Alexandre" foi publicado por Notibras no dia 29/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/leopoldo-boquinha-e-seu-alexandre-cliente-que-ri-ate-os-dentes-cairem/

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Odisseia pernambucana

    

          Orestes carregava um amontoado de medos. No entanto, não suportava a ideia de morrer em Recife. Não que tivesse medo da morte, bem como não desgostava da capital. Só que queria ser enterrado na sua Sirinhaém, a pouco mais de 70 quilômetros dali. 

          — O lugar mais lindo do mundo!

          — E por acaso você conhece o mundo todo, Orestes?

          — E por acaso preciso conhecer todas as mulheres do mundo pra saber que você é a mais linda, Marinalva?

          — Hum... Tá galanteador hoje, meu amor.

          A despeito desse romantismo todo, o coração do homem não andava bem das pernas. Vez ou outra, a dor no peito vinha sem avisar. Orestes era levado às pressas para o hospital e, após o susto, voltava para casa dois ou três dias depois. Tais episódios se tornaram mais frequentes, até que o sujeito não retornou.

          Antes mesmo do corpo do marido ser liberado pelo nosocômio, Marinalva foi assediada por quase cinco funerárias. Quase porque, assim que o funcionário da quinta apareceu, foi enxotado que nem cachorro. Que nem cachorro, não, pois a mulher era deveras zelosa em relação a essas adoráveis criaturas.

          — Marinalva, por favor, daqui a pouco você vai dizer que cães são que nem gente.

          — Óbvio que não, Orestes! Cães são confiáveis. 

          Após expulsar o último urubu que sombreava o cadáver do Orestes, a mulher começou a pensar num jeito de transportar o defunto para Sirinhaém. A distância nem era tanta, mas faltava dinheiro para fazer o trajeto, ainda mais porque Marinalva havia raspado o último níquel do cofre na compra do caixão.

            O ataúde era muito grande para caber no Fusca. Se bem que, ela pensou, poderia amarrá-lo na capota. Mas espaço não era o único problema, pois o motor do automóvel já não dava no couro há tempos. Era melhor não arriscar ficar pelo meio da estrada, ainda mais com o moribundo começando a feder. 

          Marinalva pensou em pedir ajuda para o Alexandre, o vizinho. Ele possuía uma Kombi, mas logo se atentou a um detalhe. É que os dois não se bicavam desde que haviam discutido por conta de futebol. Marinalva, torcedora doente do Santa Cruz, não suportou as provocações do vizinho fanático pelo Sport. Foi aquela saraivada de palavrões, enquanto Orestes, que era Náutico sem grandes paixões, preferiu não se meter. 

               Diante daquela sinuca de bico, eis que a viúva recebeu uma proposta inesperada. Júlio, que morava no final da rua, soube do problema da mulher e, não tardou, foi bater à sua porta.

                —  Mas isso não é loucura?

                — Não sei por que seria, Marinalva.

                — É que o Orestes sempre teve medo do mar. 

              — Se esse é o problema, tenho certeza de que ele não vai morrer afogado.

                — Você tem razão.

                Júlio, afamado pescador, havia dito que levaria o caixão no seu barco. Como o sujeito não possuía automóvel, pediu ajuda a outro vizinho, o Laurentino. Este possuía uma carroça, que era puxada pela Filó, mula de maus bofes, mas de força descomunal. 

              Antes da meia-noite, Laurentino estacionou a carroça em frente à residência da Marinalva. Lá estava também o Júlio para ajudar a colocar o caixão sobre a carroça. Os dois homens, cujos músculos eram talhados diariamente nas respectivas profissões, ergueram o pesado féretro e o depositaram cuidadosamente sobre a caçamba. 

              Após amarrarem o ataúde, Júlio e Laurentino, acompanhados da Marinalva, subiram na carroça e seguiram para a praia, onde o barco do pescador estava amarrado na areia. O trajeto foi quase silencioso, caso não fosse pelo som provocado pelos cascos da Filó sobre o asfalto duro. 

                Assim que dobrou a esquina, já era possível avistar a enseada. Mais algumas centenas de metros, Filó sentiu a areia, que abafou o ruído das passadas, agora mais pesadas. Ao comando do Laurentino, a mula estacou ao lado do barco, cujo nome, estampado na sua lateral, era Refrega. Júlio saltou da carroça e, com uma das mãos, ajudou a mulher a descer.

                  Meia hora após, o barco, já com o caixão no seu interior, foi arrastado até as águas, que estavam calmas. Marinalva e Júlio se despediram do Laurentino, que não aceitou qualquer pagamento. O morto havia sido seu amigo durante décadas. 

             Sem muitas ondas para serem vencidas, não tardou, o barulhento motor a diesel foi transpondo a distância. Júlio, olhos para frente, vez ou outra observava Marinalva com o rosto voltado para as luzes de Recife, que se afastavam cada vez mais. O pescador calculou que a viagem não duraria mais do que oito ou nove horas, dependendo da vontade da maré. Pobre infeliz, não contou com a chuva, que começou a cair forte quando ainda restavam mais de 40 quilômetros para serem vencidos pelo bravo Refrega. 

           Júlio, nervos à flor da pele, tentava aparentar calma, enquanto Marinalva, agarrada ao caixão, lamentava a maldita vontade do marido de ser enterrado na terra natal. Quanto transtorno apenas para cumprir o desejo do defunto. Perigava ela e Júlio serem arrestados para a morte. No entanto, foi justamente quando tudo parecia estar perdido, que a natureza resolveu, irônica como ela só, suspender a tormenta. 

          Abriu-se o céu, que deu passagem para os raios da manhã. Marinalva agora chorava de alívio, enquanto Júlio, apesar de uma furtiva lágrima no canto do olho esquerdo, se mantinha firme no timão. E, pouco mais de uma hora, os aventureiros avistaram as areias da praia de Barra de Sirinhaém. 

          Marinalva, eufórica, começou a conversar com o marido, mesmo que ele fosse incapaz de respondê-la, enquanto Júlio se sentiu aliviado por ter conseguido se manter firme diante do que ele imaginou ser o fim da linha. Sentiu-se Odisseu e, exausto, sentou-se ao lado da viúva. Por impulso, Marinalva beijou os lábios do herói, que, surpreso, recebeu o prêmio mais do que merecido. 

          A distância foi vencida e, há menos de duzentos metros da praia, eis que Refrega, ferido mortalmente pela tempestade que enfrentou, começou a afundar. Assustada, Marinalva gritava, enquanto Júlio, mais pragmático, puxou a mulher pela mão e, assim, os dois pularam no mar. 

          Nadaram e, de vez em quando, olhavam para trás e viam Refrega afundar até que o barco ficou totalmente submerso. Sem ter o que fazer, os dois continuaram nadando e, finalmente, chegaram à praia. Exausto, tombaram na areia e adormeceram.

         Marinalva foi a primeira a despertar. Virou-se para o lado e, por um instante, admirou o corpo de Júlio. Sentada, ela depositou o rosto sobre os joelhos e chorou. O pescador logo acordou.

          — Não chore, Marinalva. Estamos vivos.

          — Como fui tola! Fiz você perder o seu barco.

          — Quanto a isso, não se preocupe.

          — E como é que não vou me preocupar, homem?

          — Já faz tempo que quero largar essa vida de pescador.

          — Deixa de bobagem, Júlio. Você sempre foi apaixonado pelo mar.

          — É verdade. Mas, ultimamente, ele tem me deixado enjoado.

          Os dois se entreolharam e, então, sorriram. Depois, levantaram-se e, mãos dadas, foram procurar um jeito de retornarem para Recife. 

          Quase uma semana após, o caixão, intacto, encalhou na mesma praia. Orestes foi enterrado como indigente no Cemitério Municipal de Sirinhaém. Mesmo assim, o seu último desejo foi realizado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Odisseia pernambucana" foi publicado por Notibras no dia 28/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/orestes-morto-enterrado-como-indigente-nao-viu-a-viuva-se-ajeitar-com-julio/

O mistério das pedras

   

  Pode ser que uma coisa ou outra não tenha acontecido exatamente assim. Já passei dos 90 anos e, por isso, é compreensível que me esqueça de algo ou, então, troque fatos por devaneios. Mesmo assim, posso quase garantir que tudo se deu assim ou, talvez, não passou de um pesadelo que uma então menina de nove anos presenciou nos idos de 1940, bem aqui nesta casa onde ainda me encontro, em Luziânia, região próxima ao Distrito Federal.

          Não sei se é do seu conhecimento que povo de cidade pequena, geralmente, é religioso e teme qualquer coisa que remeta a pensar que é algo do Coisa Ruim. Repare que faço questão de grafar tal nome com maiúscula, já que, até onde sei, a sua existência nunca foi contestada por gente temente a Deus. 

          Manoel Barbosa de Oliveira, patriarca da família mais abastada da cidade, era rigoroso em relação às tradições. Respeitado na região, rivalizava com padre Alfredo em autoridade. E, apesar de possíveis pendengas que pudessem existir por conta de vaidades, não havia uma sequer, ainda mais por conta da religiosidade exacerbada do chefe do casarão localizado na praça da Matriz. Sem mencionar o respeitoso vínculo entre os dois homens.

          Padre Alfredo residia na igreja, que ficava ao lado da residência do senhor Manoel. Cidade pequena, o vigário conhecia cada família, mesmo os miúdos. Tamanha proximidade, no entanto, não poderia ser vista como sinal de liberdade para se aproximar do religioso, que, não raro, dava carão nos fiéis, inclusive naqueles que carregavam mais idade.

          — Dona Cremilda, estou sentindo a sua falta na missa. Temo que a senhora tenha abandonado a sua fé.

          — Desculpe pela ausência, padre Alfredo. É que meu Antônio anda acamado.

          — Já chamou o médico?

          — Ainda não.

          — Pois trate de chamá-lo.

           — Vou fazer isso agora mesmo, padre Alfredo.

          — Hum! Mas não se esqueça de levar o seu marido na missa de domingo. Afinal, do que adianta ter o corpo são, quando a alma está perdida?

          Seu Manoel também sabia se fazer rigoroso com os seus. Não admitia atrasos na hora das refeições. E que todos estivessem devidamente sentados nos respectivos lugares. E nada de distrações no horário de comer, pois, segundo o dono da residência, o cérebro precisava se concentrar para mandar mensagem para o estômago fazer a digestão. Ninguém ousava duvidar, nem mesmo Joaquim, o primogênito, que era estudante de medicina no Rio de Janeiro, então capital do país.

          Com o patriarca sentado à cabeceira, lá estava toda a família, degustando um delicioso guisado de carne, quando algo inesperado aconteceu. Uma pedra. Pois é, uma pedra, não se sabe de onde, caiu justamente no prato do seu Manoel, que ficou com a fina camisa de linho suja pelos respingos. O que era aquilo? Uma afronta, certamente!

          Joaquim, esperto como ele só, correu para a janela e tentou descobrir quem era o autor daquele vitupério. Olhou de um lado, olhou para o outro, fitou o horizonte e nada. Nem sinal do atroz indivíduo. 

          Diante daquela situação, seu Manoel e dona Eulália, a esposa, perderam a fome. Quanto à prole, foi quase obrigada a continuar sentados e terminar o almoço. Não seria um gesto de um facínora que impediria que os filhos do casal se alimentassem dignamente. 

         Seu Manoel, no decorrer da tarde, foi ter um dedo de prosa com o delegado. Aquele evento, mesmo que fosse fortuito, não poderia ficar impune. Que o responsável fosse arrancado de sua toca e exemplarmente punido. Onde já se viu interromper momento tão sagrado como a refeição em família?

          — Seu Manoel, o senhor pode ficar tranquilo, que iremos descobrir o sacripanta. E o bandido terá tratamento especial. Deixe comigo, que a polícia será impiedosa com o malfeitor.

           — É o que espero, delegado Alvarenga. É o que espero!

          Os dias seguintes foram calmos e sem qualquer pista do criminoso. Tudo parecia em paz até que, quase uma semana após, durante o jantar, de repente, outra pedra caiu no prato do seu Manoel. Joaquim correu até a janela, mas não viu sequer uma alma viva. 

          Seu Manoel, àquela hora da noite, mandou chamar o delegado. O sujeito ouviu horrores e, mais uma vez, prometeu que a polícia iria pegar o delinquente o mais rápido possível.

          — Que seja amanhã mesmo, delegado Alvarenga!

          — Pode ficar tranquilo, seu Manoel. De amanhã, não passa.

          Como já era esperado, a polícia não prendeu o salafrário no dia seguinte. Sem mais ter a quem recorrer, seu Manoel foi ter uma conversa com seu vizinho. Contou-lhe sobre os dois eventos, enquanto o religioso ouviu atentamente.

          — Padre Alfredo, não sei mais a quem recorrer. 

          — Seu Manoel, antes das refeições, reze dez pais-nossos e cinco ave-marias. 

          Após escutar o sacerdote, seu Manoel logo colocou em prática seus conselhos. Entretanto, de nada adiantaram as rezas, pois, novamente, uma pedra caiu no prato do patriarca. Enfurecido, o homem pensou em reclamar com padre Alfredo, mas, antes de colocar o pé na igreja, conseguiu controlar seus ânimos e, usando a razão, convidou o religioso para almoçar no dia seguinte. 

          Não era possível que, com o representante da igreja sentado à mesa, aqueles eventos voltassem a acontecer. Entretanto, como garantia, padre Alfredo rezou 20 pais-nossos e 20 ave-marias antes que todos à mesa dessem a primeira garfada no delicioso pernil assado. 

          A princípio ressabiados, os familiares começaram a se sentir confiantes, até que todos começaram a levar generosas porções às bocas famintas. Seu Manoel, que não gostava de falatório à mesa, enalteceu a presença do ilustre convidado.

          — Padre Alfredo, muito obrigado por livrar minha família desse ser maligno.

          — Seu Manoel, sou mero instrumento do Nosso Senhor Jesus Cristo. 

          — É verdade, padre Alfredo. É verdade!

          — Ninguém pode com Ele. Ninguém!

          — Ninguém, padre Alfredo. Ninguém!

          Enquanto padre Alfredo e seu Manoel enalteciam o poder de Jesus Cristo, eis que duas pedras certeiras os atingiram bem na testa. Só me lembro das cabeças do homem de Deus e do meu pai tombarem sobre seus pratos vazios. Os corpos dos cidadãos mais ilustres daquele tempo permaneceram inertes, enquanto o sangue escorreu sobre a mesa. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O mistério das pedras" foi publicado por Notibras no dia 28/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/misterio-das-pedras-que-mataram-padre-e-fazendeiro-continua-sem-solucao/

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O fantasma do tio Norberto

    Nunca gostei muito de confraternizações, principalmente no trabalho. Não sou chegada àquela fartura de comida, ainda mais quando está tão perto da minha tão sonhada viagem anual de férias para praia, onde poderei desfilar de biquíni. No início, fecho a boca, até que declino de todas as recusas e aceito um salgadinho. Imagino que um apenas não vai fazer tanta diferença. Ledo engano, dali a pouco estou com cinco nas mãos e um tanto mais na bolsa. 

          A última festa que participei foi na casa de uma amiga, a Leila. Quero deixar bem claro que somos amigas há tanto tempo, que não me lembro do tempo em que, na minha vida, não existia a Leila. Se me fiz presente foi por nosso longo histórico de amizade, sem contar que ela é especialista em quitutes deliciosos e pouco calóricos. 

          Aniversário do Toni, namorado da Leila. Um tipo bonitão, mas não vale a blusa colada naquele tórax de fazer qualquer uma perder a cabeça. Ele já se insinuou para mim duas ou três vezes. Obviamente que me fingi de sonsa, pois não sou de furar o olho da melhor amiga. 

Também estavam na festa o Orlando, a Nice, a Joana, o Augusto e a Solange, que veio com o noivo. Luciano é o nome do sujeito. Não sei o que a Solange viu no tipo, ainda mais porque é da mesma estirpe do Toni, isto é, gosta de dar em cima de qualquer uma. Não que eu seja qualquer uma, mas aconteceu uma vez. Também, quem mandou a Solange ser uma chata? Mas não estou aqui para falar sobre as fraquezas alheias, muito menos expor minha vida amorosa, especialmente para você, que estou conhecendo agora. 

          Lá pela segunda metade da festa, quando costumo inventar uma desculpa qualquer para ir embora, a Solange, justamente ela, instigou os presentes com uma conversa paralela.

          — Por falar nisso, Leila, depois vou te contar uma história engraçada de um tio meu que morreu e, apesar de morto, continuou aprontando.

          Gente, pra que aquela desorientada foi falar uma coisa dessas? Eu, que tenho pavor desse lance do além, travei a mandíbula de uma forma, que tive dificuldade até de mastigar as delícias sobre a mesa. 

          — Como assim, mulher? Pois trate de me contar agora mesmo! Tenho certeza de que todo mundo aqui ficou curioso?

          — Por favor, Leila, me inclua fora desse todo mundo. Prefiro enfrentar um rinoceronte faminto a me deparar com uma alma penada.

          — Deixa disso, Raquel! Além do mais, até onde sei, rinoceronte é herbívoro. 

          Pois é, dei mancada quanto ao rinoceronte, mas poderia muito bem dizer que foi por conta do nervosismo. Como sou adulta, tratei de fechar a matraca e concordar com a anfitriã. Que a Solange soltasse a língua, enquanto eu iria tomar coragem para escutar a tal história de assombração. 

          —Tio Norberto sempre foi mulherengo. Tia Judith, coitada, não gostava de expor a família e, então, vivia acobertando as traições do marido. 

          — Que safado!

          — É verdade, Leila. Titio não era fácil e, depois que bateu as botas, continuou atazanando a vida de todos que, de alguma forma, pulam fora da cerca.

          — Como assim? Não entendi.

          — Calma, Raquel, que já, já explico.

          — Hum...

          — Meu tio, que faleceu no dia 25 de abril, que é uma data emblemática dos traídos lá pelos lados de Portugal e Espanha...

          — O quê? Isso é sério?

          — Raquel, desse jeito, a Solange não termina a história.

          — Desculpe, Joana. Não falo mais nada.

          — Hum!

          — Pois bem, tio Norberto morreu justamente nesse dia e, por algo que ainda não descobri, ele parece ser um fantasma que gosta de falar com os vivos sobre traições. 

          — Ah, que bobagem!

          — Raquel, você vai deixar ou não a Solange contar a história?

          — Ah, Nice, vocês acreditam mesmo nessa bobagem?

          — Pois eu posso provar pra você, dona Raquel. 

          — Pois prove, dona Solange!

          Nossa! Pra que inventei de confrontar justamente a Solange? Mas fazer o quê? A asneira já estava na mesa e, então, a minha quase inimiga veio com uma história mais esdrúxula do que ir de fraque para praia. Fraque para praia? Gente, de onde tirei isso? 

          — Leila, você pode me arrumar um copo?

          — Peraí, Solange, você não acha que já estamos crescidinhos pra brincar do jogo do copo?

          — Raquel, por favor! Vamos ver o que a Solange tem pra falar.

          — Se você, que é a dona da casa, permite isso, tudo bem.

          — Leila, também vou precisar de uma moeda.

          — Aqui está.

          — Obrigada, meu amor.

          O circo estava armado. Solange, copo e uma mísera moeda de cinco centavos nas mãos, olhos fechados, começou a invocar o tal tio Norberto. Incrédula, percebi que as pessoas estavam atentas àquela palhaçada. A mulher meteu a moeda no copo e ficou dançando que nem doida.

           — Tio Norberto, tio Norberto, eis aqui sua sobrinha Solange, filha de sua irmã mais nova, Francineide. Peço ao senhor, tio Norberto, que me diga se aqui entre nós há adúlteros. Se houver, que dê cara.

              Nisso, a maluca virou o copo. Todos olharam para a moeda, que deu cara. Solange pegou a moeda, colocou no copo e fez o mesmo processo. A segunda pergunta foi se os adúlteros haviam traído com alguém que também estava ali. Novamente, deu cara. 

          As perguntas se seguiram, e apontava para cada um dos presentes. 

          — O Orlando é adúltero?

          Cara.

          — A Nice é adúltera?

          Cara.

          — O Augusto é adúltero?

          Cara.

          No final das contas, só restou o Luciano e eu. 

          — O Luciano é adúltero?

          Cara.

          Depois de jogar a moeda para quase todos ali, ainda faltava a minha vez. Até então, aquele povo todo era adúltero. Mesmo assim, eu ainda estava nervosa, quando, então, Solange jogou pela última vez a moeda.

          — A Raquel é adúltera?

          Coroa.

          Devo ter feito cara de espanto, pois fui prontamente questionada pela vidente de última hora.

          — O que foi, Raquel? Será que tio Norberto errou com você?

          — Comigo? De jeito nenhum, amiga! Mas tenho certeza de que acertou com você. 

          Depois do que eu disse, o tempo fechou. Solange partiu pra cima de mim que nem onça brava, mas, por sorte, foi contida pelo namorado. Tratei de ir embora antes que a coisa piorasse, mas não antes de colocar alguns quitutes na bolsa.

           Dias depois, durante uma pausa para recuperar o fôlego, o Luciano me confidenciou.

          — Raquel, meu amor, não é possível que você não tenha desconfiado daquela brincadeira da Solange.

          — Como assim?

         — Ela estava usando duas moedas. A primeira tinha duas caras; a segunda, duas coroas. 

          Gente, como fui tola! Cheguei a acender uma vela para agradecer o fantasma do tio Norberto. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O fantasma do tio Norberto" foi publicado por Notibras no dia 27/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-fantasma-do-tio-norberto-complica-a-vida-dos-outros-com-moedas-viciadas/

domingo, 26 de janeiro de 2025

Santo Anísio

    

          

        Seu Anísio, homem miúdo, solitário, econômico nos movimentos e nas palavras, morador da casa mais ao fundo, faleceu no início de 2018. Parece que foi de alguma doença de velho. Mamãe me disse que precisávamos prestar a última homenagem ao sujeito, que, na verdade, creio que nem sequer considerava a minha existência. Mesmo assim, tratei de me vestir adequadamente, pois não queria arrumar pendenga justamente com aquela que sempre me deu guarida quando ia com minhas amigas para as baladas. 

          A cerimônia, para meu espanto, estava lotada, como se o defunto fosse político ou artista de renome. E eu que sempre o imaginei mais um dos tantos desimportantes deste mundo. Ademais, os presentes pareciam sinceramente comovidos. Isso me deixou encucada, ou melhor, perplexa. Afinal, será que eu havia perdido alguma coisa naqueles meus quase 18 anos de praticamente nenhuma convivência com o dito cujo, que, nas raras vezes que passamos um pelo outro, jamais trocamos olhares?

          Enquanto esperava na fila ao lado de mamãe para dar o último adeus ao morto, ouvi os mais próximos exaltando suas qualidades. De tanto ouvi-las, comecei a acreditar em todas e até de outras que nem cheguei a escutar. Era nítido que meu jeito adolescente de enxergar o mundo havia me cegado de tamanha generosidade depositada em apenas um ser. Nessa altura, passei a crer que seu Anísio era um santo ou algo próximo a isso. 

          Assim que chegou a nossa vez de prestar as últimas homenagens ao, naquele instante, no meu entendimento, Santo Anísio, eis que tive certeza de que aquela face arredondada só poderia ter pertencido a um indivíduo que apenas havia feito o bem para o próximo. Emocionada que fiquei, algumas lágrimas verdadeiras escorreram pelo meu rosto, o que fez minha mãe me confortar com um abraço carinhoso.

          — Mamãe, por que Deus levou justamente o seu Anísio? Tanta gente má neste mundo, e Ele foi escolher logo o seu Anísio.

          — Marília, minha filha, Deus escolheu o seu Anísio justamente por isso. Muitos serão chamados, mas poucos serão escolhidos. 

          Quase no final da tarde, todos os devotos de Santo Anísio, em procissão, se dirigiram até o local onde foi depositado o caixão. Discursos, últimos lamentos, salvas de palmas, gente desesperada pela partida tão cedo, apesar dos pouco mais de 90 anos do falecido, centenas de flores, a última pá de cal foi depositada na cova. Abaixam-se as cortinas, a plateia voltou para seus lares.

          Fiquei tão impressionada com aquela coisa toda, que pedi para minha mãe emoldurar uma fotografia do nosso querido e amado Santo Anísio, que foi depositada na cabeceira do meu quarto. Todas as noites, antes de dormir, acendia uma vela para ele, que parecia retribuir com um bondoso sorriso, muito mais sincero do que o da Monalisa. 

          Os anos seguintes voaram. Passei no vestibular para engenharia civil, consegui me destacar entre os alunos e me formei com méritos. Julgava que todas aquelas vitórias eram, de certo modo, provenientes de milagres de Santo Anísio. Mas foi aí que, pouco depois de conseguir um bom emprego numa construtora, uma colega de profissão foi almoçar na nossa casa. 

          Empadão de frango, especialidade da minha mãe, fez sucesso. Tanto é que Rosilene, a minha amiga, repetiu com gosto. Depois veio a sobremesa e, então, fomos para o meu quarto. Assim que entramos, Rosilene notou a fotografia de Santo Anísio sobre a mesinha ao lado da cama. 

           — Seu Anísio! 

          — Sim. Você o conheceu?

          — E quem não conheceu o seu Anísio? É claro que o conheci. 

          — Ele morava aqui no final da rua.

           — Sei disso. Às vezes, meus pais iam visitá-lo.

          — Sério?

          — Sério.

          — Hum. Não sabia que seus pais eram amigos dele.

          — Na verdade, o seu Anísio era padrinho da minha mãe.

          — Ah, não acredito! Sério mesmo?

           — Sério. 

           — E como ele era?

           — Ah, o seu Anísio era tão simpático, tão fofinho, tão carismático. Nem parece que mandava matar gente.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Santo Anísio" foi publicado por Notibras no dia 26/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/tao-simpatico-tao-fofinho-tao-carismatico-nem-parece-que-mandava-matar-gente/