terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Vovó sabia das coisas

          

        Minha avó, apesar de nunca ter tido contato com a teoria da relatividade de Albert Einstein, sabia explicá-la como ninguém para os seres mais incautos. Este, aliás, era o meu caso quando eu estava com meus quase oito anos e mal havia começado o primário. 

          — Vovó, vinte quilômetros é muito?

          — Depende.

          — Do quê?

          — Se vai de carro, é perto; se é a pé, ih, é longe demais.

          — E cem metros? 

          — Depende.

          — Se é de carro ou a pé?

          — Não.

          — Do quê, então?

          — De quão apertado você está pra sentar no vaso.

          Errada, vovó não estava. No entanto, quero contar outra passagem que tivemos juntos, quando precisei enfrentar o medo de um garoto da escola. O cara era bem maior e tinha o dobro do meu peso. Ele vivia tocando o terror em todos e, naquela época, jurou que iria amassar a minha cara, caso eu não desse o meu lanche para ele. 

          Certo dia, minha avó me percebeu acabrunhado. Tentei disfarçar, mas a velha era deveras perspicaz.

          — Não é nada, vovó. 

          — Hum! Tá vendo aquele pardal ali naquela árvore, Toninho?

          — Sim.

          — Pois bem, vá lá contar essa lorota pro passarinho. Talvez ele acredite em você. 

          Sem para ter para onde correr, acabei revelando o motivo de eu estar alquebrado. Vovó me encarou e, não tardou, me lançou um olhar cheio de brilho acompanhado daquele sorriso faceiro que só ela possuía. 

        — Amanhã, você vai dar o seu lanche pro valentão.

        — Mas, vovó, assim vou ficar com fome.

        — Vai nada! Coloque alguns biscoitos no bolso da calça. E pode acreditar, pois tudo vai ficar bem.

        E lá fui para a escola, ainda encucado com aquela situação. O que minha avó teria planejado? Seja como for, aquilo me encheu de confiança. E, na hora do recreio, não tardou, o brutamontes se aproximou e me mostrou os punhos fechados.

          — E aí, moleque, cadê o meu lanche?

         Sem pensar duas vezes, fiz como vovó havia me orientado. Abri a lancheira e o glutão roubou o meu sanduíche de queijo na maior cara de pau. Em seguida, virou-se de costas e saiu tranquilamente pelo pátio da escola. Foi a oportunidade que tive para matar a fome buscando os biscoitos escondidos nos bolsos. 

          O resto do dia foi tranquilo. Tive prova de matemática e tirei a maior nota da sala. Não me lembrava sequer do ocorrido no recreio quando o sinal tocou e fui andando para casa da minha avó, que ficava a duas quadras do colégio. Mal cheguei, lá estava a mãe da minha mãe terminando o almoço.

            — Toninho, quer me ajudar a colocar os talheres na mesa?

            A macarronada estava excelente! Aliás, até hoje sinto saudade daquele molho que só a minha avó sabia fazer. Quando conto para meus filhos como vovó era excelente cozinheira, todos lamentam não a ter conhecido. 

            No dia seguinte, retornei para a escola, onde os estudantes, em grupos, riam. Sem entender aquilo, fui até o Gustavo e o Pedro, que eram meus melhores amigos naqueles tempos. 

            — Não tá sabendo o que houve, Toninho? - Pedro, com cara de surpreso, perguntou.

            — Não.

            — Aquele cara da sétima série saiu da escola.

            — Ué, por quê, Gustavo?

            — Ontem, ele teve uma diarreia na sala. Ficou todo borrado. O cheiro ficou tão horrível, que a professora precisou interromper a aula.

            Assim que ouvi meus amigos, o valentão, acompanhado dos pais, saiu da sala da diretora e foi embora. Segundo soube depois, ele ficou tão envergonhado pelo ocorrido, que pediu para ser transferido. Entretanto, antes que pusesse ultrapassar o portão da escola pela derradeira vez, vários estudantes gritaram:

            — Cagão! Cagão! Cagão!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Vovó sabia das coisas" foi publicado por Notibras no dia 3/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vovo-sabia-das-coisas-antes-mesmo-do-bullying-surgir/

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