quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Entre passarinhos e recordações

    
            Gosto de vir à praça. Não para encontrar amigos ou possível romance. A minha turma, talvez por tédio, resolveu se mudar para o cemitério do bairro ao lado. Quanto às provocações do coração, confesso que cansei de lutar contra a minha natureza solitária. No entanto, não chego a ser um ermitão, mesmo porque costumo trocar algumas palavras com o Aloísio, dono da banca de jornal, sem falar que, não raro, cumprimento o porteiro do meu prédio. 

           Os passarinhos. Pois são eles que me fazem acordar antes das seis da manhã, preparar meu café e caminhar até aqui. Sento neste banco em frente a estas árvores e observo o exibido bem-te-vi, que parece me encarar como se dizendo: "Ei, homem velho, ninguém canta mais alto do que eu por estas bandas!" Na certa, esse rapaz deve pensar que está diante de um desperdício da natureza, já que sou muito maior do que ele, mas não emito nem sequer um som que vale a pena ser ouvido.

           Tem também aquele talentoso sabiá-laranjeira. De tão bom cantor, o apelidei de Emílio Santiago. Nem sei se esse pássaro sabe que tem o nome de uma das maiores vozes do Brasil, mas isso não importa. Todavia, creio que o Emílio adoraria saber que tem um xará que faz sucesso por aqui. 

               Há também beija-flores, sanhaços, além dos inúmeros pardais. Entretanto, o que chama mais a minha atenção é o casal de joão-de-barro, cuja moradia me faz lembrar da casa de sapê dos meus avós. Casa humilde lá no interior. Sem energia elétrica, mas cheia de luz, sem falar dos biscoitos e do bolo de fubá que vovó sabia fazer como ninguém. 

                A última vez que estive no sítio dos pais da minha mãe foi em 1974, pouco depois do falecimento do vovô. Enquanto a família falava que ele morreria por causa de tanto fumar, eis que foi um tombo que o levou. Tropeçou numa pedra de Drummond e bateu com a testa na quina do cocho das vacas. O médico foi chamado às pressas, mas não teve tempo de fazer nada além de assinar o atestado de óbito.

           Mamãe e minha tia, após vovó ficar viúva, decidiram trazê-la para cidade. Ela resistiu por um tempo, mas acabou percebendo que a idade chegava para todos. E, aos trancos e barrancos, alcançou os três dígitos, coisa rara entre os nossos. Viveu até os inacreditáveis 107 anos.

               Quando meu avô morreu, ele estava com 87 anos, dois a menos do que estou hoje. Caso não tropique em alguma pedra no caminho que ainda me resta, talvez eu chegue à sua idade. Todavia, não tenho pretensão de esticar a vida que nem vovó.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre passarinhos e recordações" foi publicado por Notibras no dia 19/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/entre-passarinhos-e-recordacoes-de-um-quase-ermitao-sentado-na-praca/

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