terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Madrinha Chiquinha não deixou saudade

           

            Francisca Paiva, a quem todos conheciam por madrinha Chiquinha, era minha avó paterna. Minha parenta estava longe de ser o que muita gente fala sobre avós. Não mesmo! É que a velha era osso duro de roer, sem contar que parecia ter implicância comigo, justamente a neta mais nova. 

          Certa feita, lá pelos meus oito anos, quando ainda morávamos na área rural de Caxias, Maranhão, estava eu brincando próximo ao galinheiro. Madrinha Chiquinha, que estava deitada na rede ao lado da churrasqueira improvisada, me gritou.

          — Martinha, corre aqui!

          O som daquela voz estridente soou dolorido nos meus ouvidos, pois sabia que de duas uma: ou vinha reprimenda ou, pior, taca. 

          — Que é, madrinha Chiquinha?

          — Que é? E isso é modo de falar com sua avó?

          Faltou-me palavras diante daquela bronca.

          — Vai ficar aí muda e calada, menina?

          — Não, senhora.

          — Pois vá pegar a carne que tá no fogo!

          Com cuidado para não deixar cair, peguei a carne e a entreguei para vovó, que, cheia de maldade nos olhos, fez cara de quem iria degustar a maior iguaria do mundo.

          — Hum! Adoro essa gordurinha esturricando. 

          Tola que era, pensei que iria receber ao menos um naco. Que nada! A velha devorou tudo com gosto. Nem fiapo sobrou para mim. 

          — Que você tá olhando, menina?

          — Nada, madrinha Chiquinha.

          — Então, arreda daqui antes que eu lhe dê no lombo.

          Madrinha Chiquinha, como todo vaso ruim, foi difícil de quebrar. Morreu aos 105 anos, tempo suficiente para que eu me tornasse quase uma velha. Velha em idade, mas com os mesmos olhos assustados daquela menina de oito anos. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Madrinha Chiquinha não deixou saudade" foi publicado por Notibras no dia 31/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/madrinha-chiquinha-morre-aos-105-anos-sem-deixar-saudades/

É tempo de pipa!


           Tempo de pipa! Meu irmão adorava tal época, quando o céu ganhava novos coloridos na Cidade Maravilhosa. Eu, o caçula, tratava de acompanhá-lo, mesmo que soltar pipa nunca tenha sido meu forte. Na verdade, achava uma brincadeira meio chata, ainda mais porque sempre fui muito mais afeito a ir para praia. 

       Pois bem, eis que no último domingo, quando estava visitando meus sogros em Sobradinho II, no Distrito Federal, fui dar um passeio para conhecer a área. Apesar da discrepância entre as paisagens candangas e cariocas, eis que algo me fez lembrar da minha infância. É que havia um pequeno aglomerado de pessoas soltando pipa ou, como dizem aqueles que residem lá em Niterói, cafifa. 

         Em plena época de aparelhos celulares repletos de aplicativos, de jogos eletrônicos e tantas outras coisas para ocupar o povo, eis que constatei que ainda há esperança para a humanidade. Entre crianças, adolescentes e adultos, o assunto eram três varetas cobertas por papel de seda, uma rabiola e a linha com o melhor cerol. Quem bobeasse era cortado, e a pipa voava sem rumo, enquanto um bando corria para ver quem a pegava. Tá na mão!

       Não sei por quanto tempo fiquei ali observando aquela galera. Talvez tenham sido alguns minutos ou quase uma hora. Realmente não sei, perdi a noção do tempo. Meu irmão, agora um sessentão, certamente gostaria daquilo. Não duvido, correria para fazer uma pipa e colocá-la bem lá no alto.  Afinal, é tempo de pipa!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "É tempo de pipa!" foi publicada por Notibras no dia 31/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/e-tempo-de-pipa-mesmo-com-os-brinquedos-eletronicos/

 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Fofoca infrutífera

          Resido num prédio que parece mais pombal que condomínio. Circunstâncias da vida, que não me permitem gastar mais por uma moradia. Não que aqui seja tão ruim, mesmo porque já tive outras piores. No entanto, sou incapaz de fechar os olhos para tanta balbúrdia promovida por certos vizinhos. 

        Não sou da patota, mas não nasci surda. Então, não queira você que eu tape os ouvidos para as fofocas que me chegam de supetão. Para falar a verdade, até me divirto com algumas, enquanto tenho ojeriza a tantas outras. 

         — Lucrécia, preciso te contar uma coisa!

         A dona dessa frase que poderia arrebatar o coração dos mais curiosos é a Aldenora, vizinha do 304. Não vale um tostão, mas não serei eu a impedi-la de despejar aquilo que não consegue segurar dentro da boca. Portanto, que fale tudo e não me esconda nada. 

          — Pois diga.

          — Num tem o casal que se mudou no mês passado?

          — E por acaso mudou alguém pra cá?

          — Num tá sabendo?

          — Não.

          — Num é possível!

          — Hum! O que não é possível, Aldenora?

          — Ué, você num tá sabendo!

           — Mulher, o que eu não tô sabendo?

            — Do casal que se mudou pra cá.

            A ladainda, se eu não tratasse logo de cortar pela raiz, iria dar frutos graúdos na próxima safra. 

            — Olha aqui, Aldenora, eu não sei do que você tá falando. Se quer falar, que fale logo, pois tô sem tempo.

                — Desculpe, Lucrécia. É que eu jurava que você tava sabendo.

                — Pois não tô.

            — Nem eu. No entanto, ouvi dizer que, com aqueles dois, as maracutaias são secretas, mas o cinismo é claríssimo.   

  • Nota de esclarecimento: O conto "Fofoca infrutífera" foi publicado por Notibras no dia 30/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/lucrecia-impaciente-resiste-a-impeto-de-aldenora-para-falar-de-novos-vizinhos/

domingo, 29 de dezembro de 2024

Vieira e o meu sorriso de Coringa

    

            Carioca que sou, fui convidado por um amigo meio mineiro, meio paulista, o Vieira, para assistir a uma partida no majestoso estádio do Palmeiras. Como eu precisava antes dar um pulo em Brasília para encontrar meu grande companheiro e mentor, o José Seabra, editor-chefe da Sucursal Nordeste do Notibras, tive que pegar um voo da capital federal direto para o aeroporto de Congonhas, onde o Vieira já me aguardava. 

          Apesar do trânsito infernal, meu camarada conseguiu, que nem Garrincha, driblar todos os veículos à nossa frente. Tanto é que, em pouco mais de meia hora, chegamos ao seu apartamento, onde deixei minha mochila. Ingressos na mão, fomos a pé até o Allianz Parque, que fica a poucos quarteirões da residência do Vieira. 

          O Palmeiras, então líder do Campeonato Brasileiro, receberia o Botafogo, que havia perdido a liderança na rodada anterior. Como meu colega havia comprado os ingressos, nem reclamei de ser obrigado a me sentar na torcida do Verdão. No entanto, meu coração estava junto à confiante torcida do Glorioso, que me pareceu muito mais barulhenta do que a maioria esmagadora de alviverdes. 

          Como qualquer torcedor ajuizado que está rodeado de apaixonados pelo time adversário, acompanhei a partida com indiferença. É verdade que, vez ou outra, me levantei para ver se o ataque do meu time me daria alegria. Entretanto, invés de reclamar do lance perdido, gritei que o atacante estava impedido, mesmo que praticamente toda zaga do Palmeiras desse condição. 

          Aos trancos e barrancos, fui sobrevivendo, até que o meu time abriu o placar. Pra quê? Quase grito gol, mas um resquício de sanidade me manteve mudo. Se bem que, depois eu soube pelo Vieira, que não consegui esconder meu sorriso de Coringa. 

          Quase final de partida, o Botafogo vencia por três a zero, quando, já nos acréscimos, o time da casa conseguiu marcar o gol de honra. Apito derradeiro, os botafoguenses pulavam que nem loucos, enquanto os palmeirenses xingavam o time e o técnico. E eu no meio daquela muvuca, até que o Vieira me puxou pelo braço.

          — Edu, vamos?

          Retornamos para o apartamento do meu amigo, que estava deploravelmente abatido. Ele sabia que o Botafogo havia praticamente garantido o título na reta final do campeonato. O time carioca ainda teria que enfrentar o Atlético Mineiro em Buenos Aires para sagrar-se campeão da Libertadores. E, como estamos em tempos de Botafogo, não deu para o Galo nem pro Porco. O Glorioso faturou os dois canecos.

          Logo após o Botafogo ser campeão brasileiro, o Vieira, torcedor da paz, telefonou para me dar os parabéns. Não sou de tirar onda com os derrotados, mas não resisti e mandei essa:

          — Pois é, meu amigo, e dizem que esse é o pior Botafogo dos próximos 10 anos.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Vieira e o meu sorriso de Coringa" foi publicada por Notibras no dia 29/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vieira-meu-sorriso-de-coringa-e-o-porco-assado-por-um-fogao-campeao/

sábado, 28 de dezembro de 2024

Misteriosa selfie

        Não sou supersticioso, mas sou casado com a Dona Irene, cuja imaginação a transporta para outros mundos. Tanto é que um simples passeio numa manhã fria em Porto Alegre pode se tornar algo digno dos livros da Agatha Christie, tão adorados pelo jornalista e escritor José Seabra, meu colega aqui no Notibras. 

          Normalmente, quem sai com a Bebel e a Clarinha, nossas buldogues, sou eu. No entanto, como eu estava em Brasília resolvendo algumas pendências na redação do Notibras, a minha mulher assumiu a tarefa das caminhadas diárias com as nossas filhas de cara achatada. E lá foram as três enfrentar o frio na capital gaúcha, quando as ruas ainda estavam praticamente vazias.

          A Dona Irene, ansiosa para retornar para o nosso apartamento, travava uma conversa com a Bebel e a Clarinha.

          — Vamos logo, meninas! Façam o que vieram fazer, pois do jeito que o tempo está hoje, nem alma penada vai colocar a fuça pra fora de casa.

          Bebel, a mais teimosa, resolveu parar e, não tardou, se esparramou na calçada. Minha esposa tentou falar para ela se levantar, mas nada da cachorra se mover. Nisso, a Clarinha deu um salto para trás e começou a dar pequenos e quase inaudíveis rosnados. 

          — Ah, não, Clarinha! Até você? O que foi dessa vez?

          A irmã da Bebel não parava de rosnar e, então, a Dona Irene virou levemente o rosto e viu algo que a fez tremer não apenas pelo frio. O medo a tomou por completo. No entanto, antes que ela picasse a mula, fingiu que estava tirando uma selfie e, com isso, fotografoue uma bruxa bem ao fundo. 

          Assim que chegou ao nosso apartamento, a Dona Irene me ligou.

          — Edu, você não vai acreditar no que acabei de ver.

          — O que foi?

          — Vi uma bruxa!

          — Bruxa?

          — É, uma bruxa!

          Ela me mandou a fotografia, onde realmente aparecia uma mulher bem ao fundo. Todavia, falei que aquilo era uma bobagem, que aquela era uma senhora e não uma bruxa. Pra quê?

          — Edu, é uma bruxa, sim! Nunca vi essa mulher por aqui. E ela saiu de uma casa que vive fechada. 

          Sem tempo para imbróglio, ainda mais com a minha amada, tratei de concordar.

          — E agora, amorzinho, o que você vai fazer?

          — Como assim, Edu?

          — O que você vai fazer com essa bruxa?

          — Ué, nada! Por que faria alguma coisa com ela?

          — Sei lá! Não tem medo?

          — Medo? Eu? Edu, nenhuma bruxa gaúcha bate de frente comigo. Ou você já se esqueceu que sou do Piauí, sem contar que tenho vasta vivência do Maranhão?

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Misteriosa selfie" foi publicada por Notibras no dia 28/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/ligacao-de-dona-irene-informa-passagem-de-bruxa-que-nao-intimida-ninguem/

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Um domingo quase tranquilo

    

      Ricky Ricardo, do alto do seu quase um metro e noventa, se apoderou da ampla poltrona acolchoada bem em frente à televisão de dimensões cinematográficas. O homem não tinha a menor pretensão de se levantar dali durante o resto da tarde do domingo, ainda mais porque estava acompanhado de uma caixa de isopor abastecida com várias latas de cerveja. Para forrar o estômago, providenciais pacotes de batata frita ao lado. 

         Tudo preparado para assistir ao Cruzeiro entrar em campo contra o arquirrival, cujo nome o gajo se recusava a mencionar, ainda mais em dia de jogo. Dava azar, como aprendera com a saudosa mãe, que ainda hoje é lembrada como a mais notória torcedora da Raposa pelos lados de Sobradinho, aprazível cidade do Distrito Federal. 

        Valentina, a caçula, aproveitou que a mãe e a irmã haviam saído e resolveu colocar a leitura em dia. Fechou a porta do quarto e se lançou nas páginas de "Quincas Borba", de um certo Joaquim Maria. Logo de cara, foi fisgada pela trama e nem percebeu quando o pai aumentou o som da televisão. 

         Enquanto Ricky sofria a cada ataque do escrete adversário, Valentina se sentia ainda mais envolvida com a saga do professor Rubião. Todavia, os dois não eram os únicos membros da família por ali, já que Augustus e Maximus, os lindos golden retrievers, estavam no quintal correndo de um lado para o outro. Tudo perfeito, caso não fosse por um detalhe: de repente, os cães começaram a latir insistentemente, o que despertou a garota do transe. 

        Quase na mesma hora, Valentina colocou o livro ao lado e foi ver o porquê de os parentes caninos estarem latindo. Não teve nem tempo de dizer palavra. Gritou!

            — Pai! Pai! Pai!

         Ricky quase derramou a cerveja e foi correndo ver o motivo dos berros da filha. Ainda com a boca cheia de batatinhas, o homem quis saber a razão daquele desespero todo.

          — Abelha, pai! Abelha!

       O sujeito olhou para o lado e, através da janela de vidro, tomou ciência da dramática situação. Centenas de abelhas estavam digladiando com Augustus e Maximus. Valentina, impulsiva que era, quis abrir a janela e pular para o quintal para salvar os cachorros, mas foi impedida pelo pai.

            — Calma, minha filha! Você não pode ir lá fora! 

            — Pai, a gente precisa salvar os cachorros!

          Ricky, de tão apavorado, ficou sem reação. Pra quê? Foi a deixa para Valentina abrir e pular a janela. Quando se deu conta da situação, o homem precisou enfrentar seus fantasmas e tratou de também pular a janela para ir ajudar a salvar não apenas os cães, como também sua garotinha.

            Corre daqui, grita de lá, abana para todo lado, eis que, finalmente, os quatro conseguiram entrar na casa e fechar a janela a tempo das abelhas não invadirem o ambiente. Por milagre, nem os cães nem a menina foram picados. No entanto, Ricky não teve a mesma sorte. Tomou uma ferroada na orelha e mais uma no pescoço.

          O grandalhão, apesar da dor, procurou não demonstrar seus sentimentos. Afinal, não ficava bem chorar na frente da verdadeira heroína da família. Sem contar que, ao se virar para a televisão, constatou que o jogo havia terminado, e o Cruzeiro deu aquela sapecada no arquirrival. Não resistiu e extravasou: 

            — Zeiro!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um domingo quase tranquilo" foi publicado por Notibras no dia 27/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/um-domingo-quase-tranquilo-nao-fossem-as-ferroadas-das-abelhas/

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Amigo imaginário

       

Maria Luiza corria pelo gramado, enquanto os pais sorriam, surpresos que estavam com o crescimento da filha.

           — Gente, como tá enorme!

           — É verdade. Ontem mesmo era tão pequenina.

          O pai de última viagem, não tardou, foi brincar com a menina, cuja energia parecia ser infinita. Pelo menos era assim que o corpo envelhecido do homem imaginava. Seja como for, tratou de aprumar a coluna e deu aquela esticada, o que fez as juntas estalarem como ranger de porta de filme de terror. 

           Enquanto o marido tentava acompanhar o ritmo frenético da cria, a mulher aproveitou para colocar em dia a leitura. Apaixonada que era por Drummond e Pessoa, há quase seis meses se deliciava com as poesias dos livros "O diagnóstico do espelho", de Sarah Munck, e "A verdade nos seres", de Daniel Marchi. 

          De tão entretida com aqueles versos, não percebeu quando um homem se sentou em um dos bancos da praça. Se tivesse notado, talvez não lhe daria importância, mesmo porque o sujeito parecia interessado em algo ao seu lado. Não que houvesse algo ali, pelo menos não perceptível à primeira vista.

Enquanto pensava sobre a última estrofe lida, a mulher foi interrompida pela voz do estranho.

          — Desculpe.

          — O quê?

          — Desculpe.

          — Não entendi.

          — Quero me desculpar com a senhora.

          — Desculpar? Como assim?

          — Desculpa pelo zum-zum-zum.

          — Zum-zum-zum? Que zum-zum-zum?

          — O zum-zum-zum de agora há pouco. Mas pode ficar tranquila, que a pessoa que estava aqui conversando comigo já foi embora.

          Instintivamente, ela olhou para todos os lados, mas não havia ninguém por ali, a não ser o marido e a filha, que continuavam brincando. Em seguida, o gajo se levantou e foi embora gesticulando, como se estivesse reencontrado o amigo imaginário.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amigo imaginário" foi publicado por Notibras no dia 26/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/malu-brincava-com-o-pai-a-mae-lia-e-de-repente/

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Desapego

   

                Ando desapegado de tudo. Aliás, tudo é muita coisa. Diria que a vaidade não reside há tempos por aqui e, assim que ela foi desalojada, carregou certezas que me acompanharam por décadas. 

               Aos 23 anos, entrei no serviço público, onde permaneci por quase 40 anos. Não que eu não pudesse me aposentar antes, mas levei muito tempo para perceber que havia me tornado escravo do dinheiro. E, por mais que eu ganhasse por conta das horas extras, mais e mais me embrenhava em dívidas decorrentes de compras desnecessárias. Fúteis, na verdade, já que consumia sem sentir nada além do que prazeres efêmeros. 

               Decidido, acordei naquela segunda-feira e fui direto ao RH. 

               — Cansei.

               — Como assim, Jonas?

               — Quero me aposentar.

               — Mas você é tão novo.

               — Novo? Novo pra quê?

               — Pra deixar de trabalhar.

             Não quis prolongar aquela discussão sem sentido e, então, assinei toda papelada para, finalmente, buscar as minhas importâncias. Se fiquei com medo? Um pouco, mas a liberdade assusta, ainda mais para quem estava acostumado a grades. 

              Meu velho carro está encostado na garagem. Sei que ainda funciona, mas deixou de se encaixar no estilo de vida que adotei. Não pense você que pretendo comprar um modelo novo. Talvez uma bicicleta ou, então, continuarei a minha jornada a pé. 

              Não desejo badalações, não sou afeito a extravagâncias, que parecem fetiches de tanta gente. Quero apenas uma cadeira confortável para que eu possa me sentar diante do mar enquanto leio mais um livro. Se a cadeira me faltar, não tem problema, sento na areia.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Desapego" foi publicado por Notibras no dia 25/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/cansado-da-esplanada-jonas-pede-aposentadoria-e-parte-para-a-praia/

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Quase inatingível

    

        Jurema, inatingível aos homens comuns, era dotada do poder de machucar quem ousasse transpor a barreira que a separava dos meros mortais. No entanto, não eram raros os que se atreviam nessa empreitada suicida, como aconteceu com Arnaldo, iludido por achar que o amor suplanta qualquer obstáculo.

           Ludibriado por ideias tolas, o homem não conseguia perceber que nem se a caçamba do seu caminhão tivesse o dobro do tamanho daria para carregar tanta areia. E, diante de tamanha falta de noção, eis que Arnaldo não perdeu tempo e partiu para o ataque na primeira oportunidade, que aconteceu em evento na residência de ilustre cidadão da capital do país. 

       A mulher, mal entrou no recinto, foi alvejada por saraivada de olhares de todas as direções, como se fossem flashes de máquinas fotográficas diante de toda aquela formosura. Boquiabertos, os presentes não paravam de comentar sobre a tal beldade. Quem seria? Amiga do anfitrião? Parenta? Não! O fenótipo afastava tal hipótese. Se bem que, como observou Júlio, professor de biologia em uma escola na Asa Sul, a genética pode surpreender.

       Leopoldo, o dono da festa, com sorriso mais largo do que a própria face, foi em direção à moçoila. Momento de expectativa, já que, dependendo do tipo de cumprimento, o mistério poderia ser desvendado. Que nada! Apenas um breve aperto de mãos acompanhado dos tradicionais dois beijinhos na face. 

         Não tardou, bocas miúdas fizeram companhia àqueles olhos enormes.

         — Você viu aquilo?

         — Pois é, amiga!

         — Será que são amantes?

          — O Leopoldo? Não creio.

          — Hum...

          — Pensando bem...

          — O quê?

          — Vá que...

         Alheio às fofocas, eis que o Armando, do alto do seu quase um metro e sessenta e dois, atrevido que era, foi até a dama que roubara toda atenção daquela gente. Impávido, o gajo estacou diante da mulher e esticou a mão.

            — Prazer, sou o Armando?

             A pantera observou o sujeito de cima a baixo antes de proferir palavra. 

             — Jurema.

            — Em que posso servi-la, Jurema?

            — Olha que coisa interessante.

            — Não entendi.

            — É que você é o primeiro garçom que vejo usando um terno tão caro.

           Arnaldo, surpreso com a piada, quase perdeu a pose. No entanto, em seguida, caiu na gargalhada. Isso, aliás, parece ter conquistado o respeito da mulher. Tanto é que os dois passaram a noite inteira conversando, o que instigou os invejosos de plantão, que não pararam de comentar.

           — Não sei o que aquela gata viu naquele tipo.

           — É verdade.

           — Hum... Aposto que aquilo tudo não passa de maquiagem.

           — É mesmo. 

           — Puxa! Mas foi se engraçar logo com o Armando?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quase inatingível" foi publicado por Notibras no dia 24/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jurema-esbelta-vai-a-festa-no-lago-sul-e-provoca-futricas-entre-convidados/

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Transtorno pós-traumático

    

       Rogério, flamenguista muito antes dos áureos tempos de Wright, Zico e cia, andava transtornado desde a goleada sofrida pelo seu time. Pior, tal humilhação fez o homem se lembrar do Manga, famoso goleiro do arquirrival, que não perdia oportunidade de azucrinar o Mengão: "Contra o time da Lagoa, o bicho é certo!"

          O homem não acreditava que o Botafogo, pois é, o Botafogo, seria ressuscitado após tanto tempo. Não era possível! E, além das duas vitórias no Brasileirão sobre o Flamengo, ainda por cima se sagrou campeão da Libertadores, jogando apenas com dez, sobre o Atlético Mineiro. Isso sem contar que também levou o Campeonato Brasileiro alguns dias após. 

          Desacostumado a ser zoado, Rogério preferiu deixar na gaveta a camisa do Mengo. Coisa de alguns dias, mas eis que o destino voltou a traí-lo. É que o gajo começou a ter pesadelos recorrentes com o Botafogo. No entanto, a coisa se tornou tão perturbadora, que ele se via no meio da torcida alvinegra e, pasmem, estava trajado com a camisa do Glorioso. 

          Rogério acordou com o próprio grito de desespero. Sônia, a esposa, tomou um baita susto. 

          — O que foi, homem?

          O marido, suando em bicas, não dizia palavra.

          — Sonhou com o bicho-papão?

          O gajo, finalmente, balbuciou:

          — Bo-ta-fo-go.

          — Botar fogo onde, Rogério?

          — Bo-ta-fo-go.

          — Ih, pelo visto, ficou mesmo destrambelhado.

          Os dias passaram até que, na madrugada de 13 de dezembro, justamente uma sexta-feira, Sônia acordou com um barulho estranho em casa. Tentou cutucar o marido para que ele fosse ver se era ladrão. Que nada! Rogério não estava na cama. 

          Sorrateiramente, a mulher foi até a sala ver o que o esposo estaria aprontando. Pra quê? Perplexa, não podia acreditar no que estava diante dos seus olhos. Rogério, sonâmbulo, vestido com a camisa do Botafogo, entonava com fervor o hino do alvinegro. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Transtorno pós-traumático" foi publicado por Notibras no dia 23/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/rogerio-em-meio-a-pesadelos-deixa-fla-e-faz-do-botafogo-sua-nova-paixao/

domingo, 22 de dezembro de 2024

Afeita a azucrinar

   

        Família grande é aquela coisa, amores e ódios nas alturas, festa para todos os gostos, imbróglios a cada esquina. E tem hora que junta tudo isso, como aconteceu no churrasco para assistir à final da Libertadores entre o Atlético Mineiro e o Botafogo. Pela televisão, é óbvio, mesmo porque a maior parte da galera é dura, enquanto a outra precisa vender o almoço para garantir a janta. 

      Júnior, primo de Aurora, conseguiu descolar um sítio de um amigo do trabalho. Local requintado, ainda mais para aquele povo tão acostumado a passar perrengue. O tal colega do Júnior, aliás, nem era o dono, mas conhecido do caseiro, que disse que ninguém sabia do empréstimo. Tal favor possuía apenas duas condicionantes: que a bagunça fosse arrumada após a comemoração e, principalmente, isso não caísse nos ouvidos do proprietário do local.

        Para arrecadar dinheiro para o churrasco, Júnior estipulou o valor de cinquenta reais por cabeça. Tia Brotinho, tinhosa como ela só, subiu nas tamancas.

            — Júnior, por acaso você quer ficar rico à custa da família?

            — Mas, tia, vai ter carne e bebida da boa.

            — E por acaso eu sou de encher a cara?

            — Tá bom, tia. A senhora pode pagar quarenta.

            — Quarenta?

            — É, tia.

            — Hum... Tô de dieta!

            — Trinta e cinco tá bom pra senhora?

            — Trinta me soa melhor.

         Para apaziguar a situação, Júnior tratou logo de dar o desconto para a velha, cujos bofes andavam virados desde que pegou o marido com Sandrinha, afamada por sair com homens casados. 

            — Tia, tô alugando um ônibus pra levar a galera.

            — Hum...

            — A senhora tem assento na janela bem na frente.

            — Hum...

            — Vinte por cabeça.

            — Hum...

            — Quinze pra senhora.

            — Hum...

            — Doze?

            — Hum...

            — Tô brincando, tia. Pra senhora é oito.

            — Tem troco pra cem?

        A patuscada foi aquele sucesso. Rolou de tudo ao som de Beth Carvalho e Zeca Pagodinho, dois notórios botafoguenses. Se houve confusão? Algumas, mas nada além das costumeiras intrigas.

Quanto à tia Brotinho, parece que perdeu por completo as estribeiras. Além de cair com gula na comida, tomou todas e mais algumas. Desacordada, precisou ser carregada pelos parentes. E, se ainda não bastasse, vomitou durante o trajeto de volta. A sorte é que a velha, estrategicamente posicionada, conseguiu abrir a janela a tempo. 

Mas não pense que a barafunda acabou por aí. É que tia Brotinho, inconformada com o sacolejo do ônibus, ainda provocou pendenga com o condutor.

— Ô, motorista! O pagode ficou lá no sítio.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Afeita a azucrinar" foi publicado por Notibras no dia 22/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jogo-que-fez-do-fogao-campeao-teve-de-tudo-ate-pagode-de-suspensao/

sábado, 21 de dezembro de 2024

Lembranças e reparações

              

            Seria apenas mais um almoço em família, caso não fosse pelo imbróglio envolvendo os dois irmãos, que já haviam ultrapassado a barreira dos 40 anos. Pedro, o mais velho, contava para os sobrinhos sobre seu tempo de criança, enquanto Paulo enchia o prato pela segunda vez com a macarronada. No entanto, o homem não deixou de ouvir a voz do irmão, ainda mais quando o assunto também o envolvia. 

               — Seu pai, eu e nosso pai adorávamos viajar para Cabo Frio, onde acampávamos bem em frente ao mar.

               — Puxa, tio, que legal!

               — E era mesmo, Juninho. Ainda mais porque amávamos ir pescar nas pedras com o papai.

              Paulo, ao ouvi aquelas palavras saídas dos lábios do irmão, não resistiu e entrou na conversa.

              — Não acredite em tudo que seu tio diz, crianças.

              — Por quê, papai?

              — Quem gostava de pescar era o meu pai e seu tio.

              Pedro pareceu surpreso com a revelação. Tanto é que tratou logo de contestar a fala do irmão.

              — Paulo, que história é essa? Você nunca me disse que não gostava de pescaria.

              — Não é que eu não gostasse. Na verdade, eu sempre odiei!

              — Ué, e por que você ia com a gente, então?

              — E tinha outro jeito? 

              — Ué, era só falar.

              — Mas eu falava. O problema é que você e o papai nunca me escutavam.

              — Não me lembro disso.

              — Não?

              — Não!

              — Pois eu queria brincar na praia.

              — Ah, mas a gente brincava na praia.

               — Sim, mas depois de passar a manhã inteira naquelas pedras. Ainda me lembro de você e o papai se divertindo entre um e outro peixe fisgado, enquanto eu não tirava o olho da praia. 

              Quase um mês após aquele almoço, Pedro telefonou para o irmão. Ele disse que havia reservado uma casa em frente à praia do Peró. Seria não apenas momento de relembrar o passado tão longínquo, como também de reparações.

              Os irmãos pegaram o avião em Brasília e desceram no Rio. De lá, alugaram um carro e rumaram para Cabo Frio. Chegaram ao destino quando já era madrugada. Cansados pela viagem, adormeceram logo após desfazerem as malas. 

              Acordaram bem cedo e, animados, correram que nem meninos para a praia. Deram mergulhos, jogaram água um no outro, gargalharam o que há muito estava represado no peito. Ficaram por ali até que a fome bateu. 

               Almoçaram moqueca de camarão e beberam suco de abacaxi. O dia foi repleto de lembranças. Pedro, no entanto, percebeu que o caçula continuava com o olhar perdido.

              — O que foi? Não tá gostando?

              — Tô.

              — E que cara é essa?

              — Saudade do papai.

              — Também sinto falta dele.

              O domingo amanheceu ensolarado, enquanto o odor da maresia inebriava o ambiente. Tudo perfeito para mais um dia na praia. 

              — E aí, Paulo, já tá pronto?

              — Sim.

              — Então, vamos, que à tardezinha temos que retornar.

              — Que tal pescar lá nas pedras?

              Pedro, surpreso, olhou para o irmão. Os dois sorriram e, caniços e iscas nas mãos, caminharam até as pedras entre as praias do Peró e das Conchas. Não pegaram muitos peixes. Todavia, fisgaram inúmeras lembranças. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lembranças e reparações" foi publicado por Notibras no dia 21/12/2024.
  • https://www.notibras.com/site/do-almoco-em-familia-no-lago-sul-a-um-banho-de-mar-e-pescaria-em-cabo-frio/