Acabei de voltar da rua. Fui comprar meio quilo de cebola, um de tomate, além de algumas batatas. Demorei mais do que de costume, mas Arlete, minha esposa, parece que nem percebeu. Mesmo assim, puxei conversa, enquanto ela, sentada no sofá, mexia no jornal da semana anterior, talvez em busca de algo para abstraí-la dessa vida tão tediosa.
— Vi uns meninos jogando bola no campinho
do final da rua.
Arlete nem se deu ao trabalho de desviar os olhos daquelas
páginas usadas. Ainda esperei por mais um instante, até que rumei para a
varanda, onde me deitei na rede. Ouvi o ranger do tecido esticar com o meu
peso, que, não tem como esconder, fez o ponteiro da balança da farmácia da
esquina trabalhar um pouco mais nos últimos meses.
Meu pensamento voltou para aqueles garotos batendo uma pelada.
Isso me remeteu há quase 60 anos, quando era eu que corria atrás da bola.
Jogava muito! Era o craque da minha rua! O problema, hoje percebo isso com
maior clareza, é que no meu bairro havia um monte de outras ruas, cada uma com
o seu craque. Sem contar que a cidade já possuía dezenas de bairros, todos com
tantas ou mais ruas do que o meu.
Tudo bem que o meu senso crítico, ao longo
dos anos, se tornou cada vez mais presente. Todavia, hoje não estou a fim de
qualquer olhar de descrédito em relação aos meus dribles inimagináveis. Fui o
maioral da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do país inteiro e,
obviamente, do mundo todo, incluindo a Austrália, que, para aquele grupo de
terraplanista, não existe. Que assim seja, pois necessito de tal momento de
mentira. Aliás, mentira é uma palavra muito pesada. Ilusão. Sim, ilusão!
Pois lá estava eu, aos 10, driblando todos os marcadores
implacáveis. Certamente, tiveram pesadelos na noite anterior, pois sabiam que
iriam tentar o impossível, ou seja, marcar o imarcável. Sim! Eis que, velho que
hoje sou, me imagino Garrincha nos meus tempos de menino. Que seja! Meus
pensamentos são meus e pronto e acabou! Ademais, estou sozinho neste momento,
até o som da rede se esticando já se foi. Silêncio lá fora, gritaria aqui
dentro da minha cachola. Miragem sem fim.
Uma abelha! Uma mísera abelha me transporta de volta à
realidade. Não sou alérgico à picada desse inseto. Entretanto, minha
sensibilidade à dor me faz um dos seres mais covardes da face da Terra. Por que
fui deixar a janela aberta, se hoje está frio?
A danada sobrevoa em círculos minha cabeça, até que decide
pousar bem na minha testa. Fico paralisado, tamanho o medo que me domina. Meus
olhos, de tão arregalados, quase são catapultados, talvez por não quererem ver
o que vai acontecer. Plaft!!!
— Dorival, o almoço está pronto - Arlete, que acabara de matar
a abelha, me intima, enquanto sacode a arma do crime: o jornal.
- Nota de esclarecimento: O conto "O velho e o devaneio" foi publicado por Notibras no dia 13/10/2024.
- https://www.notibras.com/site/imbativel-na-pelada-dori-escapa-da-dor-da-picada/
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