Com as palmas das mãos sobre o solo rachado
da caatinga, a mulher soltou um arre e conseguiu erguer o corpo. Nunca fora boa
com números, mas sabia que havia um povoado a duas léguas. Que fossem sete ou
oito, ela estava decidida a não virar repasto de urubu. Não naquele dia. Que
fossem procurar por outra carcaça com menos vontade de prosseguir nessa
sobrevida ingrata.
Aos 38 anos, passara por momentos de penúria e raros confortos.
Desde sempre fora explorada, seja pelo pai, seja pelos irmãos, seja pelo homem
que se fez seu marido. Seca nas carnes e por dentro, nunca engravidou, apesar
das indesejadas investidas do macho que a cobria sem lhe dar sossego.
Horácio não se conformava por escolha tão
despropositada. Para que servia mulher estragada, se não era capaz de lhe dar
os filhos que tanto queria? Pois tratou de arrumar uma mais nova e de
procedência garantida.
Cassiana, a vizinha, era viúva e sustentava dois meninos graúdos. O homem foi
ter um dedo de prosa e a coisa ficou acertada. Divorciou de Veridiana e
desposou a outra. Não tardou, constatou que a escolha havia sido acertada, pois
a nova esposa logo apresentou os primeiros enjoos.
Quanto à Veridiana, foi colocada de lado para os afazeres
domésticos. Perdera o posto de esposa, mas Horácio necessitava de alguém para
ajudar a nova mulher na lida com a casa. Vez ou outra, dependendo da falta de
disposição da Cassiana, deitava-se com a ex-consorte. Rosto virado para o lado
ou fixo no teto, Veridiana aguardava o arfar do sujeito se esvair num urro.
Coisa de minutos, que pareciam uma eternidade.
Enquanto caminhava, Veridiana se recordava da vida miserável que se acostumou a
levar. Não tinha raiva de Cassiana, muito menos das crianças e do bebê a
caminho. Eram todas vítimas da perversidade do inferno onde nasceram. E nada de
indulgências para os desprovidos de sorte. Que cumprissem as próprias
agruras.
Horácio, todavia, não era visto com qualquer benevolência. Tanto é que
Veridiana decidiu pôr um ponto final não apenas nas investidas do gajo, como
também fazê-lo pagar por todos os pecados. Ela pensou numa maneira que não
levantasse suspeitas.
Após quase dois meses, eis que Veridiana percebeu que o melhor era envenenar
o traste. Que ele gostava de doces, todos sabiam. Que morresse empanturrado
de quebra-queixo!
Tentou antúrio, mas não conseguiu provocar nada além do que
diarreia e vômito no homem. Abusou de óleo de mamona, mas tratou de jogar fora
todo o tacho porque os meninos e a buchuda reclamaram seu quinhão.
— Estragou.
— E desde quando doce estraga?
— Pois esse estragou. Faço outro amanhã.
A desculpa parece que não convenceu
Cassiana, mas nada que provocasse intriga entre as duas. Quanto às crianças,
foram ludibriadas por generosos nacos de rapadura.
Os dias prosseguiram, até que, por algo tão inesperado como
picada de cobra, eis que Horácio, ao acordar depois de passar mais uma noite
sobre Veridiana, foi calçar a botina. Pelo barulho do chocalho, parece que foi
cascavel, que buscara refúgio no caldado do homem.
Veridiana nunca sentiu tamanho regozijo
ao encarar o desespero de Horácio, que gritava. Não tardou, Cassiana surgiu e
ainda pode ver a serpente se esgueirando para debaixo da cama. As duas
mulheres, cúmplices nos desejos, viram o homem se esvair em pouco mais de duas
horas.
— Vá buscar ajuda!
— Vou.
Cansada pela longa caminhada, Veridiana,
finalmente, chegou ao povoado, onde sabia não existir médico. Tratou de
comunicar o ocorrido ao padre, que acompanhou a mulher até o sítio da família.
Nem deu tempo de fazer a extrema unção. Horácio, tipo comum da região, tinha um
filete de sangue ressequido no canto dos lábios.
- Nota de esclarecimento: O conto "Veridiana, Horácio e Cassiana" foi publicado por Notibras no dia 29/10/2024.
- https://www.notibras.com/site/veridiana-horacio-cassiana-e-a-cascavel-salvadora-de-todas-as-dores/
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