Não me casei com o
grande amor da minha vida, é verdade, mas é com ele que ainda vivo momentos de
luxúria, até chegar o dia em que terei que prestar contas com Deus, isto é, se
é que Ele exista ou, então, não passe de devaneio da mente humana. Que seja uma
coisa ou outra, não estou preocupada hoje, diante do meu marido, que repousa no
caixão ornado de flores. Um bom homem, creia-me, que, durante quase 40 anos, me
fez companhia nas noites solitárias, enquanto eu, talvez ingrata, só possuísse
pensamentos voltados para o outro.
O outro, por assim dizer, é meu primo Orlando,
cujas promessas de um futuro juntos foram repentinamente quebras por uma
gravidez inesperada. Não minha, mas de outra parenta, a Judite. Sem poder fugir
da responsabilidade, meu grande amor desposou a mulher, com quem ainda vive sob
o mesmo teto. Como ele próprio me confidencia durante os momentos de alcova,
casamento é que nem fumo de rolo, tem que ir até a última tragada.
Não guardo rancor de Judite, que, aos 17 anos,
se deixou seduzir ou seduziu nosso primo. E o que teria sido uma aventura,
acabou em casamento antes da barriga despontar. E foi justamente nesse dia que
conheci Júlio, amigo da família, que me fez par. Éramos padrinhos daquele
casal, cujo noivo, pecadora que sempre fui, desejei passar a lua de mel. Não o
fiz, obviamente. Pelo contrário, me afastei de todos alguns dias após. Fui
estudar na capital.
Meti a cabeça nos livros e consegui passar no
vestibular para o curso de ciências contábeis. Durante as férias na faculdade,
evitava voltar para minha Belmonte. Resisti quase sempre, até que, já perto de
concluir o curso, visitei meus pais. Tudo corria bem, mas mamãe fez questão de
me levar para uma visita à casa do Orlando e da Judite, que já estava na
terceira gravidez.
Ao chegarmos, fomos recebidos por Orlando, que
ostentava um bigode, o que o deixou parecido com o jogador de futebol Rivelino.
Um charme, por assim dizer. Conheci os dois pequenos, Lúcia e Joaquim, que
timidamente me receberam. Judite, perto de parir novamente, sorriu e me deu um
longo abraço. Apesar de querer me livrar daquela situação o mais rápido
possível, acabei aceitando de bom grado, pois senti o cheiro impregnado do
nosso homem nos cabelos de Judite.
Enquanto estávamos sentados no amplo sofá da
sala, ouvindo as várias conversas sobre a vida de casados dos meus parentes, a
campainha tocou. Para minha surpresa, era Júlio, que estava na cidade por causa
do falecimento do pai. Aqueles olhos tristes me fizeram querer confortá-lo.
Abracei-o de modo prolongado, o que despertou um olhar de ciúme em Orlando. Sei
que não deveria sentir o que senti, mas meu coração se encheu de regozijo.
Dois dias depois, reencontrei Júlio na
rodoviária. Por coincidência, ele havia comprado passagem de volta para a
capital no mesmo ônibus que eu. Os nossos assentos não eram próximos, mas isso
não foi empecilho, pois consegui convencer a senhora que estava ao lado dele de
trocarmos de lugar. Como consegui? Simples. Agarrei Júlio pela cintura e menti
que éramos recém-casados.
Durante o trajeto de Belmonte a Salvador,
Júlio não parou de me chamar de doida por ter inventado que éramos casados.
Falei para ele que aquelas horas de viagem seriam como nossa lua de mel. Não
chegou a tanto, mesmo porque o ônibus estava lotado. Quase comportados, meu
marido de mentirinha pegava na minha mão e a acariciava. À noite, enquanto a
maioria dos passageiros adormecia ou fingia fazê-lo, tomei a iniciativa de
beijar aqueles lábios tímidos. Apesar de surpreso, Júlio soube retribuir
ardentemente.
Assim que chegamos a Salvador, combinamos de
nos encontrar em breve. Não foi tão breve assim, pois eu precisava me dedicar
aos estudos, já que enfrentaria o último semestre na faculdade. Falávamos por
telefone uma ou duas vezes por semana, até que marcamos de tomar uma cerveja
num domingo. Quando cheguei, percebi que Júlio estava ainda mais bonito.
Após alguns copos, comecei a imaginar como
terminaríamos aquela tarde. Saímos do bar e fomos para o apartamento que eu
dividia com uma amiga de curso. Ela, por sorte, tinha ido passar o final de
semana na casa dos pais, em Feira de Santana. Todavia, para meu azar, Júlio se
mostrou muito respeitador e fez questão de me acompanhar somente até a
porta.
Nosso segundo encontro aconteceu apenas no
mês seguinte, quando meu quase namorado me convidou para jantar. Era um sábado
e o prato foi moqueca. Foi o encontro dos sonhos e, para minha sorte, Júlio me
convidou para conhecer seu apartamento. Nem tive o trabalho de fingir
constrangimento, pois era justamente o que esperava desde que passamos por
marido e mulher naquele ônibus.
Não vou romantizar a noite que tivemos.
Júlio, apesar de não ter se mostrado decepcionante debaixo dos lençóis, não
conseguiu me impressionar. Seja como for, adorava estar ao seu lado e, após
alguns encontros, ele me pediu em casamento. Aceitei como se fosse mais uma
brincadeira e, duas semanas após minha formatura, oficializamos o noivado na
casa de mamãe.
Casamos sem pressa quase um ano após na mesma
igreja que Orlando e Judite. Por ironia, os dois foram nossos padrinhos.
Lembro-me muito bem do beliscão que mamãe me deu ao perceber que eu não tirava
os olhos do meu primo. O engraçado é que o romance que tivemos antes da
gravidez de Judite foi breve, apesar de intenso, e, até onde sei, ninguém
soube. No entanto, parece que mães sentem as coisas no ar. Soube disso após
dois anos, quando Maria Clara, minha filha, nasceu.
Como morávamos em Salvador, mantínhamos
pouco contato com os parentes em Belmonte, ainda mais após o falecimento de
mamãe, ocorrido pouco antes do Natal de 1993. E, quando íamos, era coisa rápida
e cada vez mais espaçada. De vez em quando, recebíamos um ou outro parente em
nosso apartamento, momentos em que ficávamos sabendo que fulano havia se
casado, sicrano morrido ou coisa assim.
Júlio e eu, que pensávamos que iríamos passar
o resto da vida em Salvador, decidimos retornar para Belmonte em 2016, dois
anos após nos aposentarmos. Maria Clara, casada com Paulo, um rapaz que havia
feito faculdade com ela, nos deu duas netas lindas, Júlia e Roberta.
Alugamos nosso apartamento na capital e fomos
morar na casa que recebi de herança de mamãe. Apesar de pequena, nos serviu
muito bem, pois éramos somente dois velhos aposentados e sem muitas
preocupações. Gostávamos de passear de mãos dadas pela orla, como se fôssemos
namorados ainda.
Júlio, logo que retornamos para Belmonte,
voltou a ficar próximo de Orlando, o que me obrigava a, vez ou outra, encontrar
meu primeiro grande amor. Judite, que há tempos andava acamada por conta de um
acidente de carro, mal conseguia andar. Júlio, alguns meses depois, me
confidenciou que os dois não se relacionavam intimamente há mais de 10 anos,
bem antes do acidente. Não sei se ele disse isso como forma de convite, mas
passei a desejá-lo como nos meus 18 anos, quando tivemos nossa primeira vez.
Aconteceu quase por acaso alguns dias após.
Meu marido precisou ir ao médico para exames de rotina. Ele me pediu para levar
um livro de poesias para Judite, além de lhe fazer companhia, pois ela parecia
cada vez mais definhada. Júlio me deixou na casa do meu primo e ficou de me
buscar mais tarde, assim que saísse da clínica.
Sentada em uma cadeira ao lado da cama de
Judite, comecei a ler o livro de poesias "A verdade nos seres", de
Daniel Marchi, autor que até então desconhecia. Lembro-me de vê-la emocionada,
ao ponto de marejar aqueles olhos tão tristonhos. A inveja, até então
entranhada em meu ser, se transformou em compaixão pela esposa de meu
primo.
Em determinado momento, levantei e fui até a
cozinha pegar um pouco de água, quando percebi a porta se abrindo. Era Orlando,
que me sorriu aquele sorriso que há muito eu havia esquecido. Ele se aproximou
para me cumprimentar e, não sei o que me deu, eu o abracei e comecei a chorar.
Orlando me fitou e, antes que pudesse me perguntar o motivo daquele choro,
aproximei meu rosto do seu e nos beijamos ardentemente.
Meu ímpeto era largar tudo e cair nos braços do meu primo.
Falei que poderíamos voltar a ficar juntos, mas ele disse que não poderia
abandonar a esposa, ainda mais com ela praticamente inválida. Apesar de tamanho
comprometimento com o matrimônio, Orlando não resistiu ao apelo do coração.
Passamos, a partir daquele dia, a ter momentos só nossos, quando tentávamos
recuperar tantos desejos reprimidos por décadas.
Não sei se meu marido
desconfiou de algo, até porque há tempos vivíamos praticamente como colegas de
quarto. Discreto como sempre foi, nunca me tratou de modo diferente. Sempre foi
muito gentil e atencioso, além de ótima companhia. Nosso casamento, que começou
como uma brincadeira naquele ônibus, provavelmente duraria mais uma década ou
duas, caso o infarto não o tivesse pegado à traição.
Orlando veio me consolar e disse que, se eu
precisasse de qualquer coisa, ele estaria sempre perto. Judite não pode vir,
pois está cada dia pior. Os médicos já a desacreditaram e, talvez, não chegue
ao próximo Natal. Isso me entristece muito. Digo isso de coração, acredite.
Você pode até pensar que não estou sendo sincera, pois seria a oportunidade para
viver livremente o amor que sinto por meu primo. Porém, gosto das coisas como
estão.
Edmar, filho mais novo do meu primo, também está aqui no velório. É incrível a semelhança com o pai. Minha filha também parece perceber, tanto é que não consegue tirar os olhos sobre o homem. Em vez de beliscão, seguro a mão de Maria Clara. Tenho certeza, mães sentem as coisas no ar.
- Nota de esclarecimento: O conto "Memórias de uma senhora entre dois amores" foi publicado por Notibras no dia 3/10/2024.
- https://www.notibras.com/site/paixao-de-mae-corre-no-sangue-da-primogenita/
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