Uma
vez, terminamos o expediente quando uma chuva pesadíssima ameaçava desabar. Ele
me perguntou:
—
Pode me deixar no Hotel Glória?
Eu
tinha ido ao centro da cidade com o Valente. Valente é meu Fuscão 71,
azul-pavão. Naquele tempo, era 2004 ou 2005, esse Fuscão era meu carro de uso
diário. Hoje, devidamente aposentado, passeia apenas de vez em quando. Eu
respondi:
—
Claro que deixo. Mas eu estou de Fusca!
E
ele, sem ver nisso qualquer problema, entrou empolgado no Valente e foi pelo
caminho me contando da viagem que meus pais, ele, sua então esposa e um filho
ainda pequenino, fizeram do Rio a Brasília a bordo de um enorme Mercury 49,
pelos idos de 1967. Meus pais eram seus compadres, pois batizaram um de seus
filhos, aquele bebê da viagem, que mais tarde viria a ser o autor de “57 contos
e crônicas por um autor muito velho” – ele mesmo, Eduardo Martínez, meu colega
na editoria do Café Literário de Notibras.
A
certa altura, em outra ocasião, ele me fez a proposta de ir para Brasília,
ajudá-lo no escritório que ficava no edifício Brasília Radio Center. Recusei,
pois havia a perspectiva de me tornar professor universitário, que se
concretizaria em pouco tempo. E ele achou aquilo uma tolice sem tamanho.
Disse-me que, pensando desta forma, eu jamais ficaria rico. Que eu precisava
pensar muito maior e jamais largar a advocacia. Melhor, que me dedicasse a ela
em tempo integral, e não enveredasse pela docência. Como estava em seus planos
ser prefeito de uma cidade no interior de Goiás, ele queria deixar o escritório
sob alguém de confiança.
Sem
coragem de largar as raízes cariocas, de ir para longe de meus familiares e
todos que conhecia, acabei ficando e insistindo no sonho da docência,
priorizando-a, por muitos anos, em detrimento do meu escritório. Nunca deixei
de dar razão ao meu amigo. Ser professor, neste país, não dá tranquilidade
material. Temos de trabalhar muitíssimo para conseguir um salário minimamente
digno para a sobrevivência.
Foi
para ele que fiz a primeira diligência profissional em São Paulo. Ainda não
conhecia a capital daquele estado. Certa vez, ele me ligou de Brasília e,
atarefado por causa de questões eleitorais, pediu que eu pegasse uma ponte
aérea e fosse até a enorme metrópole resolver certas pendências processuais.
Lembro-me de que era uma execução vultosa.
Havia,
na ocasião, conhecido há pouco tempo a mulher que viria ser minha esposa e mãe
de meu filho. Contei-lhe as histórias de nossos encontros profissionais e da
peculiar maneira com que ele me remunerava os serviços prestados – a mão no
bolso interno do paletó, sempre com quantia por mim ignorada e bem mais do que
suficiente. Ela teve vontade de conhecê-lo, mas este encontro jamais se
concretizou. Ao menos não aqui, neste plano, porque, tempos depois, Zé Alfredo
se foi. E, há uns cinco anos, minha esposa também se desincompatibilizou desta
vida.
Esses
dias eu estava me lembrando muito dele, e do sonho estranho que tive algumas
semanas após sua morte e jamais me esqueci. Nele, eu entrava numa casa antiga,
com um belo jardim, onde sabia que ele se hospedara. Um homem bem velhinho,
negro e de cabelos brancos, se acercava de mim com dois magníficos cães e me
dizia:
—
Pode vir vê-lo. Mas ele ainda está um pouco perturbado, não irá reconhecer
você.
Olhava
bem para ele e dizia:
— Oi
Zé, sou eu, Daniel, filho do seu compadre. Não se lembra de mim? Você está se
sentindo bem? Está sendo bem tratado?
Ele,
de pé numa sala com grandes janelas voltadas para o belo jardim, nada me dizia,
nem me percebia. Apenas fitava o nada, com seus olhos muito claros, perdidos.
Por
muito tempo, a sensação estranha desse sonho me acompanhou.
- Nota de esclarecimento: A crônica "Zé Alfredo", de autoria do meu grande amigo Daniel Marchi, foi publicada no Café Literário do Notibras no dia 8/10/2024.
- https://www.notibras.com/site/da-gloria-ao-gloria-e-as-lembrancas-eternas/
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