Tamanhos pensamentos, o sujeito já havia
atravessado o Atlântico tantas vezes, que perdera as contas. Cinco, seis, nove?
Talvez duas dúzias, contando as viagens em navios piratas, sem mencionar aquela
outra em uma jangada típica da sua Fortaleza, no Ceará.
Em uma dessas travessias, eis que houve um
motim comandado pelo terrível Barba-Negra. Amarildo, justamente o capitão, foi
atirado ao mar repleto de tubarões famintos. Por sorte do resquício de sonho
naquele pesadelo, eis que surgiu um golfinho salvador. O homem, agarrado à
barbatana dorsal do inesperado amigo, conseguiu sair ileso daquelas mandíbulas
ferozes.
Após se ver a salvo, Amarildo se despediu
do golfinho. O bicho tinha família e precisava retornar para o lar, doce lar,
que ficava ali mesmo no salgado Atlântico. Ademais, o gajo só precisaria dar
algumas braçadas para chegar a uma ilha no meio do oceano.
Não tardou, Amarildo
pisou na alva areia. O local parecia deserto. Com a barriga roncando, ele
tratou de arrumar algo para saciar a fome. Por sorte que às vezes acomete os
aventureiros, ele encontrou alguns coqueiros carregados.
Com sua destreza, conseguiu pegar e abrir
tantos cocos que desejou. Barriga cheia, sentiu, pela primeira vez desde que
foi arremessado do seu navio aos tubarões, um leve sono.
Quase
adormecido, Amarildo tomou um susto. Não era possível! O cruel e traiçoeiro
Barba-Negra surgiu do nada e encostou a ponta da espada na barriga do Amarildo.
— Pensou que iria me escapar, Amarildo?
— Você de novo, Barba-Negra!
— Sim, Amarildo!
— Dê-me uma espada para lutarmos de homem para homem.
Barba-Negra, vendo
aquele maltrapilho esvaído, teve um raro momento de compaixão. Desembainhou a
outra espada que carregava e a jogou na areia ao lado do rival. Este, ligeiro
que nem falcão-peregrino, pegou a espada e rolou para o lado para se
desvencilhar do primeiro golpe do traiçoeiro rival, que cortou as areias da
praia.
As lâminas afiadas
logo começaram a travar o combate de uma vida. A cada toque entre elas, faíscas
eram liberadas para surpresa dos animais que se juntaram para assistir ao
duelo. Enquanto os macacos mostravam os dentes, os papagaios charlavam coisas
ininteligíveis, enquanto duas serpentes, atrás de uma moita, sibilavam antes do
acasalamento.
E lá estavam aqueles
dois seres humanos digladiando, quando um dos oponentes, justamente o Amarildo,
se distraiu com o zumbido de uma mosca e foi atingido na barriga pelo vil metal
do Barba-Negra. E lá se foram as tripas do perdedor caírem sobre a areia. Não
tardou, lobos, saídos não se sabe de onde, avançaram sobre o banquete de última
hora.
Pobre Amarildo,
contorcendo-se em dores, foi devorado vivo, enquanto o malvado Barba-Negra
gargalhava alto para todos ouvirem.
— Há, há, há, há!!!
De tão alto, acabou despertando o Amarildo, que
dormia na rede pendurada na varanda. Acordou suando em bicas e com forte dor no
lado direito da barriga. Por sorte, foi socorrido ao hospital pelos vizinhos do
edifício onde morava. Era apendicite.
- Nota de esclarecimento: O conto "Amarildo, um homem carregado de devaneios" foi publicado por Notibras no dia 22/10/2024.
- https://www.notibras.com/site/devaneios-de-amarildo-vao-de-duelo-a-apendicite/
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