Não nasci em berço de ouro. Também nunca passei fome extrema, apesar de ter chegado bem perto durante uma época que um certo ministro disse para um país faminto que o bolo precisaria crescer primeiro para, então, dividi-lo. Por sorte, papai trabalhava em um matadouro e sempre trazia para casa alguns ossos, de onde arrancávamos os resquícios de carne que insistiam em ficar grudados, apesar da ganância dos donos do frigorífico.
Mamãe fervia aqueles ossos, que ficavam
macios e, naqueles tempos, sentíamo-nos privilegiados. Ela sempre dizia que
tutano era bom para o sangue. Se é verdade, nunca me interessei em saber. No
entanto, acredito que minha mãe deveria ter razão, pois ninguém na minha
família morreu de anemia.
Perdemos Afonso, meu irmão caçula, em 1974, por conta de
meningite meningocócica. Meu pai, que quase perdeu o emprego nessa época,
tratou logo de parar de falar sobre a doença que levou o filho. Aliás, a partir
de então, percebi nos olhos do meu velho uma desilusão com os rumos da
nação.
Foi por acaso que, já nos idos de 1990,
encontrei o atestado de óbito do meu irmão. Lá estava escrito que ele havia
morrido por problemas cardiovasculares. Fiquei preocupada se algum de nós
também poderia ter herdado essa genética. Foi aí que minha mãe me contou a
verdade. Mesmo assim, tratei de fazer alguns exames, que nada constataram de
anormal.
É engraçado quando percebo gente tão jovem desejando viver uma
época gloriosa que, até onde me lembro, nunca existiu. Se sinto saudade
daqueles anos, não é pelas coisas terríveis que aconteciam, mas pela presença
da família reunida, do sorriso inocente do meu pobre irmão, que não chegou a
completar quatro anos.
Não posso reclamar da criação que recebi
dos meus pais. Sem muitos recursos e estudo, os dois fizeram de tudo para que
os filhos pudessem passar menos agruras neste mundo tão duro. Mamãe, certamente
a de maior visão diante dos percalços que iríamos enfrentar, procurava alertar
a cria usando o tom mais doce que conseguia extrair da voz ao se lembrar do seu
poeta favorito, Gonçalves Dias.
— Crianças, a vida é luta renhida!
- Nota de esclarecimento: O conto "Sobreviventes de uma época" foi publicado por Notibras no dia 3/9/2024.
- https://www.notibras.com/site/sobreviventes-de-quando-viver-era-luta-renhida/
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