Na minha infância, morava numa casa com piso de tacos. Mamãe
possuía até uma enceradeira, que se tornou peça de museu nos tempos de hoje.
Mas não estou aqui para rememorar aqueles idos por conta desse eletrodoméstico
barulhento, que, ainda por cima, causava interferência na televisão, cuja
programação não conhecia as cores do arco-íris.
Justamente devido aos tacos, que eram feitos
de madeira como todos os demais, o nosso lar, aos ouvidos mais atentos, era
repleto de estalidos. Esse fenômeno, só soube anos mais tarde numa aula de
física, era provocado pela dilatação e pela retração da madeira por conta das variações
de temperatura. Tal revelação, aliás, pelo menos no meu caso, foi mais
traumática do que quando soube que Papai Noel não existe.
Não sei se o Lúcio, meu irmão, que é dois
anos mais velho, estava ciente desse fato físico. Seja como for, enquanto
costumávamos ficar sentados no tapete da sala, ele adorava criar histórias de
fantasmas. Era assustador, mas divertido.
Vez ou outra, Lúcio fazia pausas dramáticas,
como se querendo me provocar mais calafrios. Invariavelmente, eu perguntava se
ele havia visto alguma assombração. Meu irmão arregalava aqueles olhos escuros enormes,
colocava as mãos sobre os lábios e me abraçava, fingindo querer me proteger. Só
descobri anos mais tarde, quando, nunca dessas ocasiões, tive coragem de abrir
os olhos e, então, percebi, através do reflexo do vidro da cristaleira, o
sorriso de satisfação nos seus lábios cínicos.
Apesar de tamanha revelação ter me libertado
de tantos medos, nunca mencionei minha descoberta para Lúcio, isto é, até ontem
à noite, quando houve mais uma daquelas chatas reuniões familiares. Não me
interprete mal, não sou tão ranzinza assim. Sem contar que, de vez em quando,
consigo arrancar algumas boas gargalhadas do meu querido irmão mais velho.
Pois bem, lá estávamos
reunidos na casa dos nossos pais, quando o meu irmão, talvez tentando relembrar
os velhos tempos, se sentou no tapete da sala e me puxou pelo braço. Que nem um
devoto caçula, obedeci e me postei ao seu lado. Ele me abraçou por um instante,
até que começou a ensaiar mais uma daquelas histórias de terror. Fingi o pavor
que há muito deixou de me acompanhar, quando ele me abraçou novamente. Notei o
mesmo sorriso cínico refletido na cristaleira. No entanto, dessa vez, nossos
olhos se cruzaram.
— Desde quando você sabe, Marcos?
— Já faz um tempinho. Creio que eu devia ter
uns oito ou nove anos.
— Que nada! Nessa época você era um boboca.
Lúcio tem razão. Naquela época eu era mesmo um
boboca. Só descobri quando eu já estava entrando na adolescência.
- Nota de esclarecimento: O conto "Meu irmão e as suas histórias de assombração" foi publicado por Notibras no dia 4/9/2024.
- https://www.notibras.com/site/historias-de-assombracao-de-lucio-mais-velho-se-arrastam-ate-adolescencia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário