A turba se fez muda, olhares arregalados
direcionados para aquela austera mulher de toga. Rosto firme, aparentando
serenidade improvável em qualquer ser humano digno de confiança, a juíza deu
por início a audiência. Enquanto isso, o réu, um tal Afrânio Gaudino, olhava
para o jurado, como se tentasse entender aquelas mentes que iriam decidir pela
sua improvável inocência ou, então, praticamente certa culpa.
Como de costume, regra e praxe, as
testemunhas de acusação foram inquiridas primeiramente. De tantas que eram,
levou a manhã inteira e boa parte da tarde. De vez em quando, surgia um
murmurinho entre o público, que se mantinha atento a cada palavra.
— Você viu? Esse
crápula merece a pena máxima.
— Pois é. É uma lástima não ter
pena de morte.
— É verdade. Nem que
fosse perpétua.
Por conta do avançar
das horas, a magistrada decidiu adiar o julgamento para o dia seguinte.
Enquanto a plateia saía, o burburinho tomou conta do recinto. A maior parte
revoltada porque o destino do salafrário não iria ser definido naquele momento,
ainda mais diante de tantas provas irrefutáveis expelidas de bocas tão dignas,
cada qual inquirida sob a proteção da palavra de Deus.
Pouco antes das 9h, diante dos quase
imperceptíveis gatos-pingados na arquibancada, lá estavam a juíza, o promotor,
a advogada da defesa, os jurados e a única testemunha. Pois é, apenas uma
mísera pessoa para inquerir naquela manhã fria de agosto. A juíza. que até aquele
momento estava convencida da culpa do réu, temeu por este não ter uma defesa
condizente com a lei. Tanto é que chamou a advogada e o promotor para perto de
sua mesa.
— Doutora, o que a
senhora pretende com isso?
— Com o quê, vossa
excelência?
— Reparei que a
senhora só tem uma testemunha de defesa.
— Exato.
— Pelo jeito, parece que a senhora não
participou da audiência de ontem. A senhora reparou que todas as testemunhas de
acusação afirmaram categoricamente que viram o réu sair correndo do local do
homicídio?
— Sim.
— A senhora, então, vai querer convencer
o jurado que todas aquelas testemunhas mentiram?
— Em absoluto.
— Então, qual é o seu jogo?
— Que bom que
vossa excelência mencionou isso.
— O quê?
— Jogo.
— Jogo? Que
jogo?
— Bem, como
todos sabemos, o crime pelo qual o meu cliente está sendo julgado aconteceu no
dia 18 de junho de 2023, às 17h.
— E daí?
— Daí é que meu cliente, como prova este
vídeo, estava em Salvador assistindo ao jogo do seu time do coração, justamente
ao lado daquele rapaz ali, que é a nossa única, mas valiosa testemunha. Repare
que é uma transmissão ao vivo de um importante canal de televisão, que, por
vontade divina, calhou de flagrar meu cliente comemorando ao lado do amigo
justamente no momento que seu time abriu o placar. Então, como é que meu
cliente poderia ter cometido esse crime, se estava a mais de mil quilômetros do
local do fato?
Diante de tamanha prova, a magistrada
não teve outra opção. O promotor pediu pela absolvição do réu. Nenhum dos
jurados contestou. O réu, apesar de absolvido, não aguentou a pressão da
população da cidade e, na semana seguinte, se mudou para Salvador, onde, dizem,
assiste aos jogos do seu time. E, até onde se sabe, nunca mais foi flagrado
pelas câmeras de televisão.
- Nota de esclarecimento: O conto "Um certo julgado" foi publicado por Notibras no dia 21/8/2024.
- https://www.notibras.com/site/gol-do-time-do-coracao-salva-suspeito-de-perpetua/
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