sábado, 24 de agosto de 2024

Reticências do casório

    
        Tumulto era palavra de ordem naquele lar, quase sempre saturado de amargores. As tais promessas de harmonia feitas sobre o altar não passaram de falácias ditas pelos então inocentes jovens, que começavam a vida. Eram quase adolescentes e, por conta de tamanha ausência de sensatez, estavam inebriados de tolices escritas por José de Alencar e tantos outros. 

           Sem filhos para dividir as brigas, todas as agruras eram reservadas àqueles dois. Um mar de rosas despetaladas, que provocava a desarmonia necessária para o último estágio de qualquer casamento digno de menção. No entanto, se a separação não aconteceu naquele inverno nem na primavera, foi por conta de uma ideia, que, naquela ocasião, saiu dos carnudos lábios de Lígia, a esposa.

          Onofre, o marido, aceitou sem reclamações. Houve reticências, é verdade, mas que não chegaram a dar fim ao proposto. Uma viagem a Arraial do Cabo, com direito a passeios pelas aprazíveis locações das mais famosas cidades da esplendorosa Região dos Lagos. Era, nas palavras da mulher, a última tentativa de salvar o casamento, que parecia fadado a não chegar ao réveillon.

         Brigas, embates, desavenças diante das praias mais lindas do planeta. Jantares regados a frutos do mar não foram suficientes para aplacar tamanho desalinho entre aqueles dois seres inapropriadamente unidos pelas palavras irresponsáveis de um padre, talvez por causa da batina ainda respirando a inocência da aurora. Não restava dúvida, Lígia e Onofre concordaram. Nada de prolongar o martírio, quando a liberdade da separação estava tão próxima. 

        Na volta, sentados lado a lado, os dois estavam certos de que o divórcio era o único caminho digno para tamanha discórdia. Ela, sentada na poltrona à janela, observava o céu carregado de nuvens cinzentas. Era o prenúncio de que viveriam melhor sem a desagradável companhia um do outro. 

         O homem, olhar perdido no corredor, notou a aproximação do carrinho carregado de saquinhos de amendoim e refrigerante sem gás. Todavia, antes que os comissários pudessem oferecer tamanhas iguarias imperdíveis, eis que uma turbulência fez com que o avião subisse e descesse repentinamente. As luzes se apagaram, o que transformou aquele compartimento num ambiente hostil e tenebroso. 

         Onofre, instintivamente, buscou a mão da esposa, que, naquele instante, se mostrou receptiva àquele apelo. Os dois se abraçaram e, para surpresa de ambos, constataram que ainda se amavam. O beijo se tornou ardente e, caso as luzes não voltassem a se acender logo em seguida, não tardariam para se entregarem à luxúria em pleno voo.

          As promessas e juras de amor entre aquelas nuvens hostis, que rodearam a aeronave, parece que viraram realidade. Tanto é que, na primeira semana que se seguiu, Lígia e Onofre se amararam como nos tempos de namoro. Completou um mês, a família, os amigos e até o cachorro estranharam. Que harmonia! Até que, por conta de algo tolo, que nenhum dos dois se lembrava, os ruídos retornaram ao lar, doce lar. 

         Lígia, numa manhã fria de julho, acordou decidida a pôr um fim naquela situação. Mal se virou, não encontrou o esposo. A mulher quase pulou da cama, calçou o chinelo e foi procurar pelo desafeto, que estava sentado na poltrona da sala. Ele observou a adversária de tantas batalhas e, talvez em desalinho com o próprio pensamento, cuspiu algumas palavras.

        — Que tal Cabo de Santo Agostinho? Ouvi dizer que a praia de Arapuama é muito boa.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Reticências do casório" foi publicado por Notibras no dia 24/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/itapuama-vira-paraiso-e-mantem-harmonia-de-casal/

Nenhum comentário:

Postar um comentário