Naquele tempo, os moradores da rua inteira
se conheciam, mesmo aqueles que preferiam levar uma vida mais secreta. A
fofoca, por assim dizer, corria solta, mas a maldade não passava de meros casos
extraconjugais, certamente influenciados pelo cinema francês. Uma pouca
vergonha, diziam.
Um costume que se fazia presente
naquele lugar era o da esposa tomar conta de todos os afazeres domésticos,
enquanto o marido cumpria o papel que lhe era devido, o de provedor do lar,
doce lar. E não era diferente na casa do cheiroso da região. Tanto é que dona
Eulália, bem treinada que fora pela mãe, sabia até lustrar os objetos de
alumínio que eram cuidadosamente depositados sobre as tábuas da prateleira
cobertas por mimosos forros brancos, caprichosamente bordados por ela ou,
então, herdados da matriarca ou da sogra.
Aos sábados, as ruas reluziam o
brilho desses mimos, que secavam ao sol em um jirau perto da porta da cozinha.
Esse costume, aliás, era encarado como uma amostra de quem era mais
endinheirado, levando-se em conta não somente a quantidade, mas principalmente
a raridade dos objetos. Por conta disso, dona Eulália fazia questão de colocar
um lindo e ornado jarro em posição de destaque, o que chamava a atenção e
provocava olhares invejosos nas outras mulheres, enquanto os homens folheavam
as enormes e barulhentas folhas dos periódicos.
Pois aconteceu justamente num
sábado, quando Elisa, com a tristeza estampada no seu rosto de menina, foi
bater à porta das casas da vizinhança. E quem a recebia já era informado sobre
o trágico ocorrido.
— Mamãe morreu.
Todos procuravam consolar a
garotinha, que continuava sua sina de informar a todos sobre o inesperado
falecimento da sua mãe. Pobre menina, que, depois de completar boa parte das
residências, parou diante da casa da Júlia. Esta estava de saída com a genitora,
que recebeu a notícia incrédula, mas cheio de pesar.
— Meus sentimentos, Elisa. Vou
já, já na sua casa.
Assim que a garota se despediu,
Júlia esperou que a coleguinha se afastasse o suficiente para não escutar o que
precisava dizer.
— Mamãe, a Elisa está mentindo.
— Júlia, minha filha, respeite a
dor da sua amiga.
— Mas ela é mentirosa, mamãe.
— Que bobagem! Olha aquele povo
todo em frente à casa da finada Eulália.
Comovida pela notícia da partida da
vizinha, lá foi a mulher e a filha prestar condolências para o Jonas. Mal
juntou-se à pequena plateia em frente à casa do viúvo, eis que este saiu.
Estava procurando pela filha, que havia saído sem pedir permissão. O homem
estranhou aquela gente toda.
— O que houve? Não vão me dizer
que aconteceu alguma coisa com a minha Elisa?
Aurora, uma das moradoras mais
antigas, foi a primeira a prestar condolências para o sujeito, que, a
princípio, não entendeu.
— Minha senhora, a minha mulher
está vivíssima da silva!
E não é que dona Eulália
apareceu, para surpresa da multidão. De avental molhado porque estava areando
os alumínios, ficou furiosa com a filha. Por pouco a Elisa não tomou uma surra,
mas ficou uma semana inteirinha de castigo. Quanto àquela gente toda, a quase defunta
não teve alternativa melhor a não ser oferecer chá e torradas.
- Nota de esclarecimento: O conto "A quase defunta" foi publicado por Notibras no dia 14/8/2024.
- https://www.notibras.com/site/elisa-filha-pinoquio-e-desmascarada-por-julia/
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