Mamãe, do alto de sua sabedoria, sabia que o mundo não é um
lugar seguro quiçá para os defuntos, quanto mais para os que cismam em respirar
esse ar poluído de ganância e inveja. Por conta disso, minha velha não dava
mole nem para o Pedro, que tinha lá seus privilégios de caçula.
Maria Alice, minha irmã mais velha, e eu éramos os mais
cobrados lá em casa. Lembro-me, ainda hoje, da voz rascante de mamãe quase
gritando nos nossos ouvidos logo após o jantar.
— Não sou empregada de ninguém! Quem sujou, lavou! E quem lavou
que lave o meu prato também, pois já fiz o favor de preparar a comida.
Minha irmã e eu nos reversávamos nessa tarefa, enquanto
sobrava pro Pedro lavar o banheiro. O moleque fazia aquela cara de nojo, mas
não se atrevia a reclamar. Ele bem sabia que o chinelo de mamãe fazia curvas
para atingir nosso couro.
Não sei se esse modo de criação foi o melhor, mas desconfio das
melhores intenções da minha mãe. Era durona quando precisava ser, e realista na
maior parte do tempo. E foi assim que ela agiu na última noite no leito do
hospital, onde a derradeira batalha havia sido vencida pelo câncer. Meus irmãos
e eu nos reunimos ao redor de mamãe, e ela segurou nossas mãos e acariciou pela
última vez os rostos da prole.
— Hoje não quero choro. Se tiverem que chorar, que chorem no
meu enterro. E vamos que vamos, que a vida não pede passagem. Ela atropela!
- Nota de esclarecimento: O conto "A sapiência de mamãe" foi publicado por Notibras no dia 20/8/2024.
- https://www.notibras.com/site/leito-da-morte-ensina-que-vida-atropela-sem-pedir-passagem/
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