segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Um anjo chamado Leandro

    

Davi, aos seis anos, evitava os de sua idade e se embrenhava entre os adultos, como quem procurasse algo além de brincadeiras tolas. Não obstante, logo depois, percebia que até os mais velhos não eram capazes de lhe dizer algo que se aproveitasse. Foi justamente num desses momentos em que o guri voltou o olhar para aquele mar de livros na enorme estante dos pais. 

          Apesar de há pouco iniciado no bê-á-bá, não tardou, sentiu-se confortável e, cada vez mais embrenhado nas páginas carregadas de letras, viajou todas as viagens, até então, inimagináveis, bem ali, sentado no tapete, que chegou a desejar mágico enquanto se deliciava com "As mil e uma noites". Quantas e quantas aventuras compartilhadas com os inúmeros guris que, percebeu, se escondiam dentro do seu ser, como se acabrunhados de se revelarem, talvez por desconfiarem, cada um deles, dos demais.

          Os primeiros anos na escola foram sofríveis, pois não entendia como é que aquele bando de seres miúdos conseguia gritar tanto, enquanto ele se infiltrava cada vez mais mudo para o seu íntimo. Quando possível, fechava os olhos para buscar algo que havia lido no dia anterior. Entretanto, aprendeu a sonhar de olhos abertos para não ser repreendido pelo professor, que era mestre em chamar a atenção dos dorminhocos. 

          O menino cresceu no meio daqueles volumes, enquanto o mundo corria sem pedir passagem. Foi empurrado para engenharia, quando desejou apenas colocar no papel todos os sentimentos. Depressivo, cada vez mais depressivo, tentou cortar os pulsos metaforicamente e, em desespero, partiu para uma lâmina de metal no banheiro da faculdade. 

          Por coincidência, destino ou seja lá o que for, Leandro, professor de literatura e poeta frustrado nas horas de folga, que passava pelo corredor, ouviu um som surdo, como se fosse alguém tombando no piso frio e duro. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo e, então, entrou e, espantado, viu aquele jovem caído, que tremia como se fosse inverno, apesar do calor de quase 40 graus. O sangue, ao redor, pintava o azulejo. 

          O estudante do último período foi socorrido e, já na semana seguinte, retornou para as aulas. Graduou-se e, ao receber o canudo, resolveu pendurá-lo ao lado da estante de livros. Era o lembrete de que conseguira sobreviver ao inferno. Definitivamente, não era aquela profissão que queria para a sua vida, mas, até aquele momento, era o que tinha.

          Por conta de influência do pai, arranjou colocação numa construtora. Passava mais horas no escritório fazendo cálculos do que vistoriando as obras. Ganhava o suficiente para ter uma vida confortável, mas a depressão retornou ainda mais intensa.

           No fim de uma tarde, pegou o elevador e rumou para o último andar do edifício. Desceu no quadragésimo piso e, pelas escadas, foi até o terraço. Observou o movimento lá embaixo, como se toda aquela gente fosse formiga. Um vento o empurrou para trás, mas, decidido, voltou os olhos para o que parecia ser o seu destino. 

          Pelos cálculos, levando-se em conta a altura, a massa corporal, a gravidade e a resistência do ar, tudo acabaria em questão de míseros segundos. Foi aí que imaginou ter ouvido uma voz. Não uma voz qualquer. Ele a reconheceu quando a escutou pela segunda vez. 

          — Davi? É você?

          O engenheiro virou o rosto e, por um instante, pensou que fosse um anjo. Não, não era. 

          — Professor Leandro?

          Abraçaram-se. Não se viam há quase cinco anos, logo após a formatura do jovem. Tempo suficiente para se juntar muitas histórias, que foram contadas num café ali perto. 

          Leandro disse que se aposentara e que estava com planos de publicar um livro de poesias. Não porque se imaginasse talentoso. Entretanto, tantos outros poetas, alguns até mais medíocres do que ele, estavam publicando. Por que, então, ele deixaria que suas poesias morressem no fundo da gaveta? 

          — Sabe, Davi, criei coragem. Caso não venda, não me importo. Mas quero ver meus poemas publicados. Quem sabe, talvez, alguém se atreva a lê-los algum dia?

          — Eu vou ler todos, professor!

          Promessas de novos encontros, que foram deixadas de lado. Coisas de cidade grande, que tem a infeliz mania de afastar os amigos. 

          Perto de completar 40 anos, Davi decidiu que não poderia perder mais tempo. Começou a escrever compulsivamente e, após revisar seus poemas, contratou uma editora de pequeno porte. O resultado o agradou tanto, que resolveu se inscrever em um desses concursos literários. E, como era esperado, não venceu, mas tirou um honroso terceiro lugar. 

          De preterido pelos jurados, o livro pareceu agradar críticos e, não tardou, começou a vender que nem água no deserto. Novas impressões, uma atrás da outra, o que o tornou afamado. E a bola de neve não parou por aí, pois Davi foi contratado por uma grande editora, o que levou o poeta a um outro patamar jamais esperado por ele. 

          Três anos depois, quando estava terminando o seu quinto livro, Davi se lembro do professor Leandro. Por onde ele andaria? Após buscas pela internet, descobriu que o mestre havia falecido há menos de duas semanas. 

          Davi, carregado de remorso, procurou não pensar no assunto, até que, não suportando mais a própria vergonha, buscou a família do professor. 

          — Dona Laura?

          — Sim.

          — Sou o Davi.

          — Sei quem é você.

          — Sabe?

          — Sim. Você é o poeta Davi Mendes.

          — Sim.

          — O seu marido era meu amigo.

          A mulher observou o homem diante de si e, então, parece que as coisas começaram a se encaixar.

          — Espera aí! Então, você é o Davi!

          — Sim.

          — Não! Sei que você é o Davi Mendes, mas não sabia que você era o Davi do Leandro.

          — Do que a senhora está falando?

          — Por favor, Davi, entre. 

          Assim que o homem entrou, Laura foi até a estante e pegou um livro. Em seguida, a mulher o entregou ao convidado.

          — É seu. O Leandro fez a dedicatória assim que publicou. Ele quis entregá-lo, mas nunca conseguiu encontrá-lo.

          Davi abriu o livro de poesias do professor Leandro. Ele havia cumprido com o intento de tirar os escritos da gaveta e publicá-lo. Davi leu a dedicatória.

        Ao meu amigo Davi,

       Espero que você um dia encontre o caminho da poesia.

 Acredite. É por onde encontrará os outros que habitam o seu íntimo.

          Forte abraço!

          Leandro

          Davi não conseguiu evitar que os olhos marejassem. 

          — O Leandro falava muito de você.

          — Dona Laura, o seu marido foi muito importante para mim.

          — Não sabia.

          — Ele era a voz que eu queria ouvir. A voz que salvou a minha vida.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um anjo chamado Leandro" foi publicado por Notibras no dia 20/10/2025.
  • https://www.notibras.com/site/um-anjo-chamado-leandro/

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