sábado, 11 de outubro de 2025

Dona Loreta e o cachorro desmilinguido

    

    Desmilinguido, aquele cachorro, mero quadrúpede desprovido de qualquer graça, chegou ao pé da porta do barraco, moradia de dona Loreta, viúva desarranjada da vida, que a segurava talvez por teimosia. É que a velha já tentara de tudo para não precisar ser enxotada da cama antes mesmo do dia amanhecer, pois não tinha outro jeito a não ser sair para catar as latinhas na rua antes que outro catador o fizesse.

       Dona Loreta, com uma pedra maior e menos calejada que suas mãos, desferia porretadas até que cada lata ficasse tão amassada, que poderia ser usada como lâmina para cortar os pulsos ou as jugulares. Coragem que faltava para tal intento e, por isso, a idosa batia, batia, batia até que não sobrasse mais alumínio para ser batido. 

       Assim que todas as latas estavam devidamente espremidas e colocadas em um enorme saco trançado de propileno, a mulher imaginou ter ouvido um gemido. Pensou se tratar de uma vizinha mais exibida em mostrar que ainda conseguia arrancar algum prazer da vida, quando, então, constatou o engano. Isso é bicho com certeza! Pois passe, que aqui é casa de pobre.

        Mal completou a frase, se deparou com aquele fiapo que cismava em se agarrar a este mundo, quando o mais sensato era se render ao próprio destino. Entretanto, aquele animal parecia preferir trocar a brevidade por algo que, mesmo correndo o rico da quase certeza do prolongamento da penúria, lhe forrasse o estômago desértico. Dona Loreta torceu os lábios duas ou três vezes, franziu a testa e, finalmente, tentou arrancar uma confissão do filhote.

       Que porcaria é você? Hum! Quem te trouxe até aqui? Num vai me responder?

      Ela acolheu o vira-lata no colo e o levou até a cozinha, onde lhe deu um pouco da comida que lhe faltava. 

        — Só espero que você não coma muito ou vamos os dois morrer de fome antes que finde o mês. 

        Antes do cachorro devorar o último grão, a pobretona exclamou:

        — Jonas! Sim, vai ser Jonas! Tenho certeza de que o Jonas não vai se importar se eu colocar o nome dele em você, seu porcaria. Ele foi o meu cachorrão e, agora, você será o meu cachorrinho. 

        Dona Loreta soltou aquela gargalhada se lembrando da cara que o marido sempre fazia quando ela lhe contava algo engraçado. Só parou porque engasgou com a própria alegria momentânea, como se não lhe fosse permitido ser feliz, nem mesmo por um efêmero instante. 

            — Mas tu é mesmo feio!

            A mulher observou aquele pedaço de desnutrição, que pareceu não entender o que eram aqueles sons estranhos saídos dos lábios murchos.

            — Olha aqui, Jonas, não adianta fazer essa cara, que não tenho culpa de você ser feioso. 

                O cachorro ganiu, momento em que dona Loreta o acomodou novamente em seus braços.

              — Fica triste, não, Jonas. A vida é feia, mas é a única que você e eu temos. 

            Jonas não cresceu tanto, talvez por conta da genética, mais provável que fosse por conta das escassas refeições. Sobreviveu, é verdade, que nem dona Loreta, que nem toda aquela gente daquele lugar, que insiste em tentar mais um dia, apenas mais um. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dona Loreta e o cachorro desmilinguido" foi publicado por Notibras no dia 11/10/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dona-loreta-e-o-cachorro-desmilinguido/

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