domingo, 5 de outubro de 2025

Oco de sentimentos

    

        Quando você quer machucar um homem, você dá um soco. Quando você quer ofender, você lhe mete um tapa na cara. Dói menos, mas machuca na alma. No entanto, ao que parece, o que arrebenta mesmo com a autoestima do sujeito é a traição, ainda mais naqueles tão acostumados a configurar no polo ativo do adultério e, de repente, se percebem como o último a saber. 

        Rogério, cuja embalagem enganava quase todas, nunca teve muito conteúdo. Tá bom! Mas quem nunca se encantou por aquele colorido papel de presente, ainda mais quando acompanhado de um belo laço? Pois o gajo era exatamente isso. O problema era quando a azarada abria a caixa e, para seu espanto, só encontrava o vazio, repleto de ar, que lhe parecia faltar nos pulmões. 

        A despeito de tamanho desapontamento, convenhamos, não é fácil abrir mão de algo tão prazeroso aos olhos. Por isso, a ofuscada pela luz do Rogério, não conseguia enxergar o óbvio, que era largar o osso e seguir em frente. Arlete, mulher de seus 35 anos, bem resolvida sob vários aspectos, levou um tempo para perceber que aquele gato era um mato sem cachorro. Todavia, quando a razão lhe chegou em uma cinzenta manhã de julho, a mulher despertou. 

        Arlete não fez alarde. Saiu de mansinho e, a partir daquele momento, não atendeu mais aos chamados do Rogério, que, a princípio, até gostou. Afinal, aquela era a oportunidade para o homem sair à caça e, a certeza estava ao seu lado, logo encontraria outra beldade para se satisfazer. E foi o que fez. 

      Rogério se envolveu com Lúcia, Márcia, Rafaela, Lorena, Francisca, Leandra, Roberta... Ih, a lista era tão extensa, que até o galã se confundia com aquele malabarismo para que uma não descobrisse a existência da outra. E tudo corria muito bem, até que o inesperado aconteceu. Quer dizer, inesperado para ele, já que, aos olhos da Arlete, era o inevitável. 

        Não era possível! Como é que é? Rogério não acreditava naquela cena, digamos, adocicada que nem quindim. Pois lá estava a Arlete, a sua Arlete, aos beijos e abraços com o Antônio. Sim, com o Antônio! Como é que podia uma coisa daquelas? Com o Antônio? Ah, não! Aquilo já era demais!

        Rogério se sentiu afrontado por descobrir que a sua Arlete estava completamente enlaçada no seu melhor amigo. Amigo? Só se for da onça! E, de tanto olhar, acabou por ser descoberto pelos enamorados, que lhe acenaram sorrindo, como se aquela fosse a situação mais normal do mundo. Na verdade, até era, mas não para alguém como Rogério, tão repleto de empáfia. 

        Determinado a não demonstrar consternação, Rogério sorriu aquele sorriso amarelo dos constrangidos. Seja como for, arranjou um pouco da coragem que sempre lhe fora desconhecida e, então, deu alguns passos em direção aos pombinhos. A vontade era de esganar o colega, mas este era mais parrudo e, era provável tomar uma surra. Quanto à Arlete, o traído não teve ânimo nem de olhá-la nos olhos. 

       Passado o constrangimento, Rogério se despediu e, com o corpo cambaleante e a mente a mil, tentou encontrar o rumo do lar, doce lar. Mal entrou, se sentou no amplo sofá da sala e chorou as lágrimas que nunca lhe fizeram companhia. E, por mais estranhas que fossem, pareciam honestas. Como é que aquilo teria acontecido justamente com ele, filho único de dona Solange e seu Valdemar? Não, não e não! 

      Desesperado, Rogério pensou em acabar com a própria vida. Sim, era o único jeito que resolveria aquela situação. Até imaginou Arlete, arrependida, agarrada ao seu caixão e vertendo o choro das adúlteras arrependidas. Sim! Isso! Certamente, a mulher nunca mais teria coragem de tocar os lábios com os de outrem. 

       Sem a intrepidez necessária para cortar a garganta com uma faca ou pular do seu apartamento do quinto andar, Rogério pareceu encontrar a arma que o livraria de todo aquele sofrimento. Um alfinete. Sim! Um mísero alfinete. 

        Determinado, o homem pegou aquele minúsculo objeto e, com brilho nos olhos, o ergueu por um instante. Bravo que se sentiu, o levou até a ponta do mindinho da mão esquerda e, impetuoso, o espetou. Rogério se sentiu assombrado com aquilo e, quase de imediato, saiu pela janela que nem balão furado. Nunca mais foi visto. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Oco de sentimentos" foi publicado por Notibras no dia 5/10/2025.
  • https://www.notibras.com/site/oco-de-sentimentos/

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