Tal profissão, entretanto, não era o seu
sonho de infância que havia se realizado. Afinal, quem, em sã consciência,
deseja trabalhar lavando cadáveres, fazer com que fiquem com aparência natural
e serena, além de amenizar as marcas da morte para, assim, os enlutados não
ficarem ainda mais consternados na hora do velório? Seja como for, parece que o
sujeito cavou a própria cova.
Voltando alguns parcos anos atrás, lá estava
o então displicente estudante de veterinária em uma aula de patologia. Não que
não gostasse de estudar. Era o cheiro de formol, que subia pelas narinas e lhe
queimava os olhos. Talvez por isso, Edson Antônio aguçava os ouvidos para não
perder qualquer dica que, porventura, o professor jogasse no ar.
Enquanto o mestre fazia a
necropsia do cadáver de um cachorro, ele fez uma correlação, até então,
estranha aos alunos.
— A necropsia é um livro aberto, e o perito
precisa saber interpretá-la para não se confundir com a causa mortis.
Foi aí que o Edson Antônio, que
estava interessado em uma colega, quis fazer um gracejo.
— Professor, só que esse livro está escrito
em braile, né?!
O professor encarou o aluno
engraçadinho, mas se conteve, o que não o impediu de pensar: "Que imbecil!
Aposto que não vai se formar."
A previsão do educador, afinal, se concretizou naquele mesmo
semestre, quando Edson Antônio percebeu que o seu futuro seria o de astro da
música. O problema é que parece que ele se esqueceu de combinar tal intento com
o público.
Longe da veterinária e dos palcos, o sem-futuro pulou de emprego
em emprego até que um amigo da família o convenceu de que dar um trato em
mortos era uma boa profissão, ainda mais que a grande maioria dos candidatos
desiste na primeira semana por falta de coragem. Por sorte, o Edson Antônio não
temia os mortos, mas os vivos.
O trabalho era solitário e, na
maior parte, noturno. E lá estava o Edson Antônio passando um creme para
restaurar a cor e a vitalidade da pele do cadáver de uma idosa quando, por
milagre ou algo estranho à razão, as pontas dos seus ágeis dedos começaram a
decifrar algo:
"Por que não tomei mais sorvete? Sempre gostei tanto de
sorvete!"
Pego de surpresa, o
necromaquiador deu dois passos para trás. O que era aquilo? Cautelosamente,
depositou o indicador da mão esquerda sobre o cadáver:
"Não tenha medo. Só quero tomar sorvete pela última vez."
Edson Antônio, atônito, balbuciou:
— Sorvete?
Nenhuma resposta,
até que ele voltou a tocar o cadáver com os dedos:
"Sim. De abacaxi, por favor."
— Abacaxi? Mas onde vou arrumar sorvete a esta hora?
"Tem um supermercado aberto 24h aqui pertinho."
— Você deve estar de brincadeira comigo.
"Brincadeira que nada. É desejo reprimido mesmo."
— Desejo reprimido? Ah, para com isso, né?!
"Por favor, estou morta de vontade!"
Edson Antônio tinha a alternativa de ignorar tamanha
súplica. Todavia, curioso que era, queria ver onde é que aquela história iria
dar. Ademais, também era fã de sorvete de abacaxi e, então, foi até o
supermercado e comprou um pote de dois litros.
O homem abriu o recipiente diante do rosto da mulher, que,
para seu espanto, abriu os olhos e lhe sorriu os poucos dentes que ainda lhe
restavam e que logo seriam enterrados com ela. Edson Antônio, para entender o
que a morta queria dizer, dedilhou a pele da mulher.
"Vamos! Quero sorvete!"
— Puxa, acabei me esquecendo de comprar uma colher.
"Esquece a colher. Enfie um dedo nesse sorvete e coloque na
minha boca."
— Eca!
"Deixa de ser ridículo!"
— Ridículo? Olha como fala comigo, hein?!
"Hum! Tá bom, tá bom, tá bom! Não sabia que você era tão
sensível. Por favor, Edson Antônio, tenha piedade desta criatura que nunca mais
vai ver a luz do dia. Ponha, por caridade, um pouquinho de sorvete nos meus
lábios."
Pego de surpresa, o sujeito juntou uma boa
quantidade do sorvete com dois dedos e colocou nos lábios da morta. Ela sorveu
tudo e agradeceu com um sorriso e uma piscadela de olho.
— Ei, peraí! Como é que você sabe o meu nome?
"Simples. Tá escrito ali na escala de serviço."
— Ih, é mesmo! Aliás, qual é o seu nome?
"Greta Garbo."
— Sério?
"Claro que não, né, seu tolo?!"
— Ei! Não precisa me ofender!
"Perdão
novamente."
— Ah, deixa pra lá!
"Nádia."
— O quê?
"Eu me chamo Nádia."
— Sério?
— Sim.
— Prazer, Nádia!
"O prazer é todo meu, Edson Antônio."
O gajo, que não conseguia mais distinguir ilusão de
realidade, estendeu a mão para a defunta.
— Amigos?
"Amigos."
O velório aconteceu assim que amanheceu. Os poucos parentes, ansiosos para que aquilo terminasse logo, apressaram o enterro. Edson Antônio foi o único a verter lágrimas.
- Nota de esclarecimento: O conto "Edson Antônio, o tanatopraxista" foi publicado por Notibras no dia 8/10/2025.
- https://www.notibras.com/site/edson-antonio-o-tanatopraxista/
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